Continuação da entrevista feita por Clara Ferreira Alves (CFA)
CFA - Sempre defendeu o velho criticismo, o criticismo clássico, que não se coloca à frente da literatura nem pretende descodificá-la.
GS - Todo o criticismo é secundário. Walter Benjamin disse que algures numa biblioteca existe um livro que ninguém tirou da prateleira e leu, e pode esperar outros duzentos anos até que alguém o descubra e leia. E nesse dia o livro poderá mudar a literatura. O livro pode esperar duzentos anos. Quando morreu, Kakfa tinha publicado duas ou três historietas e três ou quatro esboços, hoje existem 114 línguas que têm Kafka como adjectivo, incluindo o japonês.
CFA - Você também já é um adjectivo.
GS - Não posso falar disso. Mas pense nos que escrevem e que caminham para o silêncio e a derrota sem se saber, até que um dia alguém pega no livro e ele começa a arder. E não se pode fazer isso com televisão, com filmes...
CFA - Ou com o que está dentro ou é criado por um computador.
GS - Nunca! Pode fazer-se isto com uma pintura, uma composição musical, um edifício...
CFA - Já que falamos de televisão, a CNN dava notícia há pouco tempo da necessidade de legislar no caso de crianças virtuais, imagens computorizadas de crianças, para efeitos pornográficos. Será a criação desta pornografia infantil um crime, mesmo sem existência de corpos reais? Este tema não lhe será estranho porque já no seu livro In Bluebeard’s Castle antecipava estes problemas.
GS - Números publicados pela Scotland Yard: o dinheiro ganho na pornografia é, neste momento, superior ao dinheiro ganho nas drogas. Pornografia é número um. Teremos crianças virtuais, coprofilia virtual, sadismo virtual. Estamos muito doentes.
CFA - A morte do humano, uma humanidade moribunda?
GS - Isso foi Auschwitz, peço perdão, isso aconteceu em Auschwitz. Estamos a viver postumamente. Em todas as vidas existe um dia que muda todas as coisas. Você ainda é demasiado jovem mas esse dia há-de chegar. Para mim, chegou quando eu percebi que o sr. Pol Pot no Camboja tinha enterrado vivos cem mil homens, mulheres e crianças. Eu aceito que sobre Auschwitz muito pouca gente sabia, embora Elie Wiesel diga que se sabia, mas eu acho que muito poucos sabiam. As notícias sobre Pol Pot estavam em todas as televisões, chamavam-se os «killing fields». E nada fizemos!
CFA - Também nada fizemos no Ruanda.
GS - Nada fizemos, e vendemos mais armas ao Khmer Rouge. Os franceses e os britânicos continuaram, e eu investiguei isto, a vender armas. Para mim, este foi o ponto em que, ao olhar-me de manhã ao espelho, disse para mim mesmo: não estou realmente a olhar para um ser humano. Eu nada fiz. Não gritei, não saltei do telhado, não corri para o Camboja.
CFA - Uma ausência de Deus na nossa civilização.
GS - Isso foi há muito tempo. Há uma ausência do Homem, o que é muito sério.
CFA - E no entanto nunca tivemos tantas tribos lutando em nome de Deus, reclamando um Deus único e verdadeiro. O fundamentalismo religioso, e não falo apenas do islâmico, argumenta com armas e com guerra a favor da presença de Deus.
GS - Não conheço a resposta, mas lutar em nome de Deus, em vez de lutar em nome da Ford Motor Company, ou da Vodafone, ou da Shell Oil, não sei o que é pior. Tenho pena, mas talvez haja mais dignidade em lutar em nome de Deus.
CFA - Crê que os israelitas, com esta operação de Ariel Sharon contra os palestinianos, perderam a autoridade moral que tinham? Talvez pela primeira vez?
GS - Israel decerto perdeu o respeito por si próprio. O que o torna muito perigoso. Quando se perde o respeito por si próprio é um grande perigo. A coisa extraordinária é que existe um número de pessoas muito corajosas, escritores como Amos Elon, Amos Oz, que ainda dizem corajosamente: Não! Com grande risco, grande risco.
CFA - Amos Elon é muito lúcido, perfeitamente lúcido num dilema sem lucidez. Mas estes novos barbarismos, estes Bin Laden, onde os arrumamos?
GS - Sempre tivemos barbarismos, os vândalos e os hunos nunca foram embora. Átila matou um milhão de pessoas quando invadiu. A diferença é que agora a televisão, os «media», dão-nos conta disso imediatamente. Tornou-se realidade virtual, e habituámo-nos completamente a isso, não chegamos a acreditar na realidade, ela transformou-se na pornografia do inevitável.
(continua)