George Steiner (V)
Continuação da entrevista feita por Clara Ferreira Alves (CFA)
CFA - Sempre defendeu o velho criticismo, o criticismo clássico, que não se coloca à frente da literatura nem pretende descodificá-la.
GS - Todo o criticismo é secundário. Walter Benjamin disse que algures numa biblioteca existe um livro que ninguém tirou da prateleira e leu, e pode esperar outros duzentos anos até que alguém o descubra e leia. E nesse dia o livro poderá mudar a literatura. O livro pode esperar duzentos anos. Quando morreu, Kakfa tinha publicado duas ou três historietas e três ou quatro esboços, hoje existem 114 línguas que têm Kafka como adjectivo, incluindo o japonês.
CFA - Você também já é um adjectivo.
GS - Não posso falar disso. Mas pense nos que escrevem e que caminham para o silêncio e a derrota sem se saber, até que um dia alguém pega no livro e ele começa a arder. E não se pode fazer isso com televisão, com filmes...
CFA - Ou com o que está dentro ou é criado por um computador.
GS - Nunca! Pode fazer-se isto com uma pintura, uma composição musical, um edifício...
CFA - Já que falamos de televisão, a CNN dava notícia há pouco tempo da necessidade de legislar no caso de crianças virtuais, imagens computorizadas de crianças, para efeitos pornográficos. Será a criação desta pornografia infantil um crime, mesmo sem existência de corpos reais? Este tema não lhe será estranho porque já no seu livro In Bluebeard’s Castle antecipava estes problemas.
GS - Números publicados pela Scotland Yard: o dinheiro ganho na pornografia é, neste momento, superior ao dinheiro ganho nas drogas. Pornografia é número um. Teremos crianças virtuais, coprofilia virtual, sadismo virtual. Estamos muito doentes.
CFA - A morte do humano, uma humanidade moribunda?
GS - Isso foi Auschwitz, peço perdão, isso aconteceu em Auschwitz. Estamos a viver postumamente. Em todas as vidas existe um dia que muda todas as coisas. Você ainda é demasiado jovem mas esse dia há-de chegar. Para mim, chegou quando eu percebi que o sr. Pol Pot no Camboja tinha enterrado vivos cem mil homens, mulheres e crianças. Eu aceito que sobre Auschwitz muito pouca gente sabia, embora Elie Wiesel diga que se sabia, mas eu acho que muito poucos sabiam. As notícias sobre Pol Pot estavam em todas as televisões, chamavam-se os «killing fields». E nada fizemos!
CFA - Também nada fizemos no Ruanda.
GS - Nada fizemos, e vendemos mais armas ao Khmer Rouge. Os franceses e os britânicos continuaram, e eu investiguei isto, a vender armas. Para mim, este foi o ponto em que, ao olhar-me de manhã ao espelho, disse para mim mesmo: não estou realmente a olhar para um ser humano. Eu nada fiz. Não gritei, não saltei do telhado, não corri para o Camboja.
CFA - Uma ausência de Deus na nossa civilização.
GS - Isso foi há muito tempo. Há uma ausência do Homem, o que é muito sério.
CFA - E no entanto nunca tivemos tantas tribos lutando em nome de Deus, reclamando um Deus único e verdadeiro. O fundamentalismo religioso, e não falo apenas do islâmico, argumenta com armas e com guerra a favor da presença de Deus.
GS - Não conheço a resposta, mas lutar em nome de Deus, em vez de lutar em nome da Ford Motor Company, ou da Vodafone, ou da Shell Oil, não sei o que é pior. Tenho pena, mas talvez haja mais dignidade em lutar em nome de Deus.
CFA - Crê que os israelitas, com esta operação de Ariel Sharon contra os palestinianos, perderam a autoridade moral que tinham? Talvez pela primeira vez?
GS - Israel decerto perdeu o respeito por si próprio. O que o torna muito perigoso. Quando se perde o respeito por si próprio é um grande perigo. A coisa extraordinária é que existe um número de pessoas muito corajosas, escritores como Amos Elon, Amos Oz, que ainda dizem corajosamente: Não! Com grande risco, grande risco.
CFA - Amos Elon é muito lúcido, perfeitamente lúcido num dilema sem lucidez. Mas estes novos barbarismos, estes Bin Laden, onde os arrumamos?
GS - Sempre tivemos barbarismos, os vândalos e os hunos nunca foram embora. Átila matou um milhão de pessoas quando invadiu. A diferença é que agora a televisão, os «media», dão-nos conta disso imediatamente. Tornou-se realidade virtual, e habituámo-nos completamente a isso, não chegamos a acreditar na realidade, ela transformou-se na pornografia do inevitável.
(continua)
7 Comentários:
Perder o respeito por si próprio! Eis uma peça de antologia... olha se os nossos líderes seguissem este principio?
Sócrates já teria abandonado o PS, Cavaco filiava-se no PS, o Dias Loureiro demitia-se do Conselho de Estado e Vitor Constâncio do Banco de Portugal! Seria uma catástrofe!
Cem mil mortos enterrados vivos
no regime de Pol Pot no Camboja!
Lutar por Deus mais nobre
que lutar pela Vodafone!
Mário Soares responderá:
Negoceie-se com Deus,
os terroristas
e o Diabo!
E está certo
porque a diplomacia
é a continuação da guerra
por outros meios.
Digo: convem-me uma sociedade
que me ajude a ser mais feliz.
A caridade começa comigo e
prossegue com os meus semelhantes.
«Bebamos à nossa saúde
que já vamos sendo tão poucos!»
mas que mania essa de ser "feliz"!! onde é que se compra esse platonismo? qual é o diploma que rege a Felicidade, qual é o estado que a protege? temos que ser lúcidos e sobreviver...
Tens razão, Oliveira.
Não fui claro.
Não é propriamente a felicidade
que cumpre ao Estado 'dar'.
É antes o proporcionar as condições
para «o maior desenvolvimento de cada um»,
«condição do máximo desenvolvimento de todos».
A felicidade é só um corolário
do desenvolvimento pessoal e colectivo.
Retomo os votos e bebo
à nossa saúde e
à dos que se nos
assemelham
que já vamos sendo
cada vez menos...
antónio - o implume
Como cidadão, penso que tanto Dias Loureiro, como Vitor Constâncio, deveriam suspender temporariamente as suas funções enquanto não fossem devidamente esclarecidas, com competência e imparcialidade, as suas actuações no desempenho das suas funções.
Reconheço que, no caso de Vitor Constâncio, atendendo à profunda crise que atravessamos, se torna difícil a sua substituição pemporária.
No caso de George Steiner, o entrevistado a que nos vimos referindo, o mesmo foi convidado por Rui Vilar e aceitou, ser um dos "keynote speakers" da Conferência Gulbenkian de 2007.
Trata-se de conferências promovidas anualmente pela Fundação Gulbenkian na última semana de Outubro.
não sei se não é um perspectiva demasiado sombria...
estou a gostar.
(O Manuel é um desconhecido que calha no lugar ao lado do João, partindo-se depois para a conversa, sobre as jovens e outros assuntos. Avançando no fim um convite para almoçarem.)
Tiago
Tenho na minha frente o livro "A Ciência terá limites?", publicado pela "gradiva" e com o patrocínio da Fundação Calouste Gulbenkian.
O livro é de Julho deste ano e sob a coordenaçao de George Steiner publica a Conferência Gulbenkian de 2007, que é promovida anualmente pela Fundação na última semana de Outubro.
George Steiner foi o convidado por Rui Vilar como "keynote speaker" porque "É um dos grandes humanistas europeus contemporâneos."
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