segunda-feira, dezembro 8

George Steiner (III)

Continuação da entrevista feita por Clara Ferreira Alves (CFA)

CFA - Quais são os quartos por abrir no novo Castelo de Barba Azul? Onde estão os novos horrores?
GS - No dia em que o controlo deixar de ser não apenas o do gosto e passar a ser político. Agora, podíamos estar noutro lugar que não Lisboa. Podia ser Chicago, Filadélfia... este hotel é totalmente americano. O aeroporto? Totalmente americano. Não se sabe onde se chega, se se tapar os olhos e os desvendar não se sabe onde se está. O planeta torna-se uniforme. Três quintos do planeta falam anglo-americano. Só a língua espanhola resiste, por causa da estatística demográfica e da América Latina. A China não exporta a língua, nunca o fez e nunca o quis. O jornal «Le Monde», o mais arrogante, chauvinista e «distingué», agora tem aos sábados artigos do «The New York Times» em inglês. Porque tem de subsistir. O perigo é a estandardização da vida.
CFA - É a marca do século XX?
GS - Parece que sim. Mas há oposições. André Malraux, um homem inteligente, disse há muito tempo que o século XXII seria o da grande guerra contra o Islão. Grandes guerras religiosas vão mudar muita coisa. Sem o Apocalipse parece que o supermercado será o templo do Homem. Pense nas centenas de milhões de pessoas que nunca tiveram um luxo, boa comida, viagens. Existe uma pequeníssima elite privilegiada à qual pertenço que tem viajado, ficado nestes hotéis, e existem os outros, os que eu vejo agora no aeroporto de Londres e que nunca saíram da Inglaterra e que de repente descobriram a luz do sol. As classes baixas não sabiam que se podia estar quente numa praia até aparecer o pacote turístico. Saint-Just já tinha dito, antes de morrer na guilhotina, a felicidade é uma ideia nova na Europa. Qual o preço da alta cultura? Tem sido esse o meu trabalho nos últimos 50 anos.
CFA - Existe uma consciência europeia? Ou morreu, como morreu uma ideia da Europa como Mitteleuropa — antes da construção artificial do Mercado Comum — após a II Guerra Mundial?
GS - Morreu na II Guerra Mundial e morreu no Kosovo. Não existe consciência europeia. E ninguém na Europa compreende o desprezo americano pela Europa. Há pouco tempo dei na América as Harvard Lectures e, lá, as pessoas são educadas até tomarem dois «whiskies». A seguir dizem a verdade: «Se nem conseguiram tomar conta do Kosovo vão para o inferno! A Europa e os vossos ódios não nos interessam.» A matança no País Basco, na Irlanda. 50 anos depois de Auschwitz, os massacres nos Balcãs.
CFA - Em Bruxelas estão muito contentes por já não existirem guerras na Europa.
GS - São uma anedota, completamente corruptos, funcionários de terceira. Tive o privilégio de ensinar nas melhores universidades, tive estudantes que vão para os «media», lei, economia. Não tive um único bom estudante que se tornasse alguém em Bruxelas. É um fedor de corrupção e mediocridade. Gandhi, quando lhe perguntaram se não achava importante a civilização europeia, disse «foi uma ideia maravilhosa».
CFA - A Europa transportou-se para a América após a guerra. O espírito da Europa apanhou o barco e atravessou o Atlântico. Creio que também já escreveu isso nalgum lado.
GS - Talvez a grande cidade europeia seja Nova Iorque, com 20 línguas e 10 grandes universidades. Talvez a energia e o génio venham daí. Mas, 50 anos depois dos nazis, que tenhamos movimentos neofascistas activos na Europa... é incrível. Talvez estejamos demasiado cansados, tivemos demasiada história.
CFA - Somos demasiado velhos.
GS - Não sabemos se a noção de idade se aplica a um colectivo. Na fisiologia dizem-nos que os músculos ficam rígidos e quando isso acontece lançam ácido no sangue, envenenam o sangue. Talvez. Ou talvez as mulheres comecem a mudar as coisas na Europa. Quem senão elas? E começam a ter finalmente carreiras importantes. Tivemos Mrs. Thatcher, que foi o político mais poderoso em Inglaterra desde o tempo de Isabel I.
CFA - Ela foi acusada de se comportar como um homem.
GS - Disparate total.
CFA - Concorda com o anti-europeísmo dela?
GS - A Inglaterra foi salva diversas vezes por 20 milhas de água. Não o esqueçamos. Uma tradição parlamentar, e de «common law», e de polícias que não estão armados. E porque o deveriam estar? Não precisamos dos polícias armados da França, dos tribunais de Bruxelas ou do Banco Central Alemão, salvo seja. O problema da Inglaterra foi o de aprender a tornar-se pequena depois de ter sido grande. É preciso sorte e sensatez. Portugal teve o mesmo problema. Era preciso ter um Nelson Mandela como primeiro-ministro.

(continua)

5 Comentários:

Às 08 dezembro, 2008 10:11 , Blogger antonio ganhão disse...

Faz-me lembrar, guardadas as devidas proporções, o meu post sobre a mochila com o galo de Barcelos... só existem com os heróis da cultura americana!

 
Às 08 dezembro, 2008 12:31 , Blogger Peter disse...

Amanhã, quando já não houver multidões, irei tentar comprar "A ciência terá limites?", publicada este ano pela Gradiva. Depois poderei pronunciar-me sobre ele.

Curriculo:
"Licenciou-se na Universidade de Chicago e completou o mestrado na Universidade de Harvard, onde foi galardoado com o Bell Prize in American Literature. O doutoramento foi realizado na Universidade de Oxford, instituição que lhe atribuiu outra valiosa distinção, o Chancellor's Essay Prize. Em 1944 adquiriu a nacionalidade americana, embora tenha vivido grande parte da sua vida na Europa. Foi membro da equipa editorial do Economist, trabalhou no Institute for Advanced Study na Universidade de Princeton, e leccionou em Cambridge, Stanford, Yale, Genebra e na Austria."
Com uma obra publicada este ano pela "Relógio d'Água" e 4 pela Gradiva, com várias publicadas nos anos anteriores (é só ir ao Google) não se trata dum ilustre desconhecido.
Acresce que se não vendesse, as editoras não o publicavam e não acredito que todos os compradores fossem defensores acérrimos da cultura americana.
A sua formação académica e a vivência cultural da entrevistadora naquele país, poderiam justificar a tua afirmação: "só existem com os heróis da cultura americana", com a qual não concordo.

“Não existe consciência europeia. E ninguém na Europa compreende o desprezo americano pela Europa. Há pouco tempo dei na América as Harvard Lectures e, lá, as pessoas são educadas até tomarem dois «whiskies». A seguir dizem a verdade: «Se nem conseguiram tomar conta do Kosovo vão para o inferno! A Europa e os vossos ódios não nos interessam.» A matança no País Basco, na Irlanda. 50 anos depois de Auschwitz, os massacres nos Balcãs.”

“Não existe consciência europeia" afirmo eu também e não me reporto apenas ao âmbito cultural.

Ou existe?

 
Às 08 dezembro, 2008 20:23 , Blogger vbm disse...

A propósito, repito, elaborou-se mais filosofia no século 20 do que nos 24 séculos precedentes, e o país que mais publicou essa criação foi precisamente os Estados Unidos.

Contudo, é verdade o que Steiner diz: - Nova Iorque é uma projecção da Europa na América e foi a Costa Leste que induziu o desenvolvimento intelectual e científico americano, agora agudizado tecnologicamente no Estado da Califórnia - a 6ª economia mundial, dizem! (mas, também, em crise...)

A Ásia, - Japão -, ainda há-de jogar cartas na indústria automóvel movida a energia não-poluente. Veremos se os Estados Unidos embarcam ou não nessa epopeia.

De qualquer modo, requer-se um cepticismo moderado nestas questões de desenvolvimento económico, intelectual, científico. Como dizia Keynes: - Se a Economia fosse uma Ciência, já não haveria fome nem subdesenvolvimento no Mundo!

 
Às 08 dezembro, 2008 22:31 , Blogger Peter disse...

vbm

"elaborou-se mais filosofia no século 20 do que nos 24 séculos precedentes, e o país que mais publicou essa criação foi precisamente os Estados Unidos."

Não fazia a mínima ideia. Deves estar bem documentado.

"Nova Iorque é uma projecção da Europa na América e foi a Costa Leste que induziu o desenvolvimento intelectual e científico americano"

O científico não sabia, sabia o cultural em Greenwich Village, não é?

Destaco a tua citação do John Maynard Keynes (nunca mais me esqueci do nome completo do senhor):
"se a Economia fosse uma Ciência, já não haveria fome nem subdesenvolvimento no Mundo!"

 
Às 09 dezembro, 2008 03:13 , Blogger alf disse...

A entrevista é interessante mas está cheia de visões distorcidas, na minha modesta opinião, que não sou disto especialista.

Alguns pensamentos que me ocorrem sobre a supremacia americana:

Primeiro: isso é bom? por exemplo, se a alemanha tivesse ganho logo a 1º guerra mundial, talvez a europa fosse agora a maior potência e o alemão a língua dominante; isso seria bom? o mundo seria melhor?

segundo: os EUA consideram que andam a endireitar o mundo com as suas contínuas intervenções militares; mas será mesmo? será que as intervenções militares americanas têm resolvido os problemas e acelerado o caminho para um mundo melhor, ou isso tem acontecido apesar delas?

terceiro: O projecto de um mundo melhor não é um projecto de poder; o objectivo da europa não é ter poder militar nem dominar o mundo

quarto: os alunos brilhantes das universidades não estão em Bruxelas. Pois não. Nem no governo dos EUA

bem, e já não vou pensar mais senão não saio daqui...

 

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