George Steiner (III)
Continuação da entrevista feita por Clara Ferreira Alves (CFA)
CFA - Quais são os quartos por abrir no novo Castelo de Barba Azul? Onde estão os novos horrores?
GS - No dia em que o controlo deixar de ser não apenas o do gosto e passar a ser político. Agora, podíamos estar noutro lugar que não Lisboa. Podia ser Chicago, Filadélfia... este hotel é totalmente americano. O aeroporto? Totalmente americano. Não se sabe onde se chega, se se tapar os olhos e os desvendar não se sabe onde se está. O planeta torna-se uniforme. Três quintos do planeta falam anglo-americano. Só a língua espanhola resiste, por causa da estatística demográfica e da América Latina. A China não exporta a língua, nunca o fez e nunca o quis. O jornal «Le Monde», o mais arrogante, chauvinista e «distingué», agora tem aos sábados artigos do «The New York Times» em inglês. Porque tem de subsistir. O perigo é a estandardização da vida.
CFA - É a marca do século XX?
GS - Parece que sim. Mas há oposições. André Malraux, um homem inteligente, disse há muito tempo que o século XXII seria o da grande guerra contra o Islão. Grandes guerras religiosas vão mudar muita coisa. Sem o Apocalipse parece que o supermercado será o templo do Homem. Pense nas centenas de milhões de pessoas que nunca tiveram um luxo, boa comida, viagens. Existe uma pequeníssima elite privilegiada à qual pertenço que tem viajado, ficado nestes hotéis, e existem os outros, os que eu vejo agora no aeroporto de Londres e que nunca saíram da Inglaterra e que de repente descobriram a luz do sol. As classes baixas não sabiam que se podia estar quente numa praia até aparecer o pacote turístico. Saint-Just já tinha dito, antes de morrer na guilhotina, a felicidade é uma ideia nova na Europa. Qual o preço da alta cultura? Tem sido esse o meu trabalho nos últimos 50 anos.
CFA - Existe uma consciência europeia? Ou morreu, como morreu uma ideia da Europa como Mitteleuropa — antes da construção artificial do Mercado Comum — após a II Guerra Mundial?
GS - Morreu na II Guerra Mundial e morreu no Kosovo. Não existe consciência europeia. E ninguém na Europa compreende o desprezo americano pela Europa. Há pouco tempo dei na América as Harvard Lectures e, lá, as pessoas são educadas até tomarem dois «whiskies». A seguir dizem a verdade: «Se nem conseguiram tomar conta do Kosovo vão para o inferno! A Europa e os vossos ódios não nos interessam.» A matança no País Basco, na Irlanda. 50 anos depois de Auschwitz, os massacres nos Balcãs.
CFA - Em Bruxelas estão muito contentes por já não existirem guerras na Europa.
GS - São uma anedota, completamente corruptos, funcionários de terceira. Tive o privilégio de ensinar nas melhores universidades, tive estudantes que vão para os «media», lei, economia. Não tive um único bom estudante que se tornasse alguém em Bruxelas. É um fedor de corrupção e mediocridade. Gandhi, quando lhe perguntaram se não achava importante a civilização europeia, disse «foi uma ideia maravilhosa».
CFA - A Europa transportou-se para a América após a guerra. O espírito da Europa apanhou o barco e atravessou o Atlântico. Creio que também já escreveu isso nalgum lado.
GS - Talvez a grande cidade europeia seja Nova Iorque, com 20 línguas e 10 grandes universidades. Talvez a energia e o génio venham daí. Mas, 50 anos depois dos nazis, que tenhamos movimentos neofascistas activos na Europa... é incrível. Talvez estejamos demasiado cansados, tivemos demasiada história.
CFA - Somos demasiado velhos.
GS - Não sabemos se a noção de idade se aplica a um colectivo. Na fisiologia dizem-nos que os músculos ficam rígidos e quando isso acontece lançam ácido no sangue, envenenam o sangue. Talvez. Ou talvez as mulheres comecem a mudar as coisas na Europa. Quem senão elas? E começam a ter finalmente carreiras importantes. Tivemos Mrs. Thatcher, que foi o político mais poderoso em Inglaterra desde o tempo de Isabel I.
CFA - Ela foi acusada de se comportar como um homem.
GS - Disparate total.
CFA - Concorda com o anti-europeísmo dela?
GS - A Inglaterra foi salva diversas vezes por 20 milhas de água. Não o esqueçamos. Uma tradição parlamentar, e de «common law», e de polícias que não estão armados. E porque o deveriam estar? Não precisamos dos polícias armados da França, dos tribunais de Bruxelas ou do Banco Central Alemão, salvo seja. O problema da Inglaterra foi o de aprender a tornar-se pequena depois de ter sido grande. É preciso sorte e sensatez. Portugal teve o mesmo problema. Era preciso ter um Nelson Mandela como primeiro-ministro.
(continua)
5 Comentários:
Faz-me lembrar, guardadas as devidas proporções, o meu post sobre a mochila com o galo de Barcelos... só existem com os heróis da cultura americana!
Amanhã, quando já não houver multidões, irei tentar comprar "A ciência terá limites?", publicada este ano pela Gradiva. Depois poderei pronunciar-me sobre ele.
Curriculo:
"Licenciou-se na Universidade de Chicago e completou o mestrado na Universidade de Harvard, onde foi galardoado com o Bell Prize in American Literature. O doutoramento foi realizado na Universidade de Oxford, instituição que lhe atribuiu outra valiosa distinção, o Chancellor's Essay Prize. Em 1944 adquiriu a nacionalidade americana, embora tenha vivido grande parte da sua vida na Europa. Foi membro da equipa editorial do Economist, trabalhou no Institute for Advanced Study na Universidade de Princeton, e leccionou em Cambridge, Stanford, Yale, Genebra e na Austria."
Com uma obra publicada este ano pela "Relógio d'Água" e 4 pela Gradiva, com várias publicadas nos anos anteriores (é só ir ao Google) não se trata dum ilustre desconhecido.
Acresce que se não vendesse, as editoras não o publicavam e não acredito que todos os compradores fossem defensores acérrimos da cultura americana.
A sua formação académica e a vivência cultural da entrevistadora naquele país, poderiam justificar a tua afirmação: "só existem com os heróis da cultura americana", com a qual não concordo.
“Não existe consciência europeia. E ninguém na Europa compreende o desprezo americano pela Europa. Há pouco tempo dei na América as Harvard Lectures e, lá, as pessoas são educadas até tomarem dois «whiskies». A seguir dizem a verdade: «Se nem conseguiram tomar conta do Kosovo vão para o inferno! A Europa e os vossos ódios não nos interessam.» A matança no País Basco, na Irlanda. 50 anos depois de Auschwitz, os massacres nos Balcãs.”
“Não existe consciência europeia" afirmo eu também e não me reporto apenas ao âmbito cultural.
Ou existe?
A propósito, repito, elaborou-se mais filosofia no século 20 do que nos 24 séculos precedentes, e o país que mais publicou essa criação foi precisamente os Estados Unidos.
Contudo, é verdade o que Steiner diz: - Nova Iorque é uma projecção da Europa na América e foi a Costa Leste que induziu o desenvolvimento intelectual e científico americano, agora agudizado tecnologicamente no Estado da Califórnia - a 6ª economia mundial, dizem! (mas, também, em crise...)
A Ásia, - Japão -, ainda há-de jogar cartas na indústria automóvel movida a energia não-poluente. Veremos se os Estados Unidos embarcam ou não nessa epopeia.
De qualquer modo, requer-se um cepticismo moderado nestas questões de desenvolvimento económico, intelectual, científico. Como dizia Keynes: - Se a Economia fosse uma Ciência, já não haveria fome nem subdesenvolvimento no Mundo!
vbm
"elaborou-se mais filosofia no século 20 do que nos 24 séculos precedentes, e o país que mais publicou essa criação foi precisamente os Estados Unidos."
Não fazia a mínima ideia. Deves estar bem documentado.
"Nova Iorque é uma projecção da Europa na América e foi a Costa Leste que induziu o desenvolvimento intelectual e científico americano"
O científico não sabia, sabia o cultural em Greenwich Village, não é?
Destaco a tua citação do John Maynard Keynes (nunca mais me esqueci do nome completo do senhor):
"se a Economia fosse uma Ciência, já não haveria fome nem subdesenvolvimento no Mundo!"
A entrevista é interessante mas está cheia de visões distorcidas, na minha modesta opinião, que não sou disto especialista.
Alguns pensamentos que me ocorrem sobre a supremacia americana:
Primeiro: isso é bom? por exemplo, se a alemanha tivesse ganho logo a 1º guerra mundial, talvez a europa fosse agora a maior potência e o alemão a língua dominante; isso seria bom? o mundo seria melhor?
segundo: os EUA consideram que andam a endireitar o mundo com as suas contínuas intervenções militares; mas será mesmo? será que as intervenções militares americanas têm resolvido os problemas e acelerado o caminho para um mundo melhor, ou isso tem acontecido apesar delas?
terceiro: O projecto de um mundo melhor não é um projecto de poder; o objectivo da europa não é ter poder militar nem dominar o mundo
quarto: os alunos brilhantes das universidades não estão em Bruxelas. Pois não. Nem no governo dos EUA
bem, e já não vou pensar mais senão não saio daqui...
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