No último quarto do século, a historiografia sobre a filosofia analítica tem evocado frequentemente e com alguma insistência a influência de Kant neste ou naquele filósofo contemporâneo ou nesta ou naquela problemática analítica privilegiada, à revelia, muitas vezes, dos autores comentados, quando não das próprias interpretações analíticas tradicionais e mais ou menos "oficiais" a respeito dessa influência. Na perspectiva destas últimas, a rejeição da filosofia de Kant (e, portanto, da sua influência) é uma consequência natural da rejeição analítica quer do fundacionalismo da Crítica da Razão pura, quer da problemática caracteristicamente epistemológica desse livro e da sua expressão na filosofia da linguagem e na filosofia da ciência contemporâneas e, em particular da actualidade da teoria “Kantiana” sobre a distinção entre o analítico e o sintético, e a possibilidade do sintético à priori, para uma teoria sistemática da significação que unificaria esses domínios. Mas, por outro lado e em contraste, a historiografia mais recente da filosofia analítica (Coffa, 1986, 1995; Rorty, 1988; Friedman, 1992, 1993) sugere claramente a existência de uma continuidade mais ou menos essencial entre a problemática “Kantiana” referida, e, de maneira geral, o fundacionalismo “Kantiano”, e a problemática das diferentes vertentes do movimento analítico desde as suas origens até aos nossos dias, a qual ocorreria justamente a despeito dessa reiterada rejeição da actualidade da filosofia de Kant, quer dizer, sem que os filósofos analíticos tivessem necessariamente consciência dela.
Todo o pensamento é imoral. A sua própria essência é a destruição.
Se pensamos em qualquer coisa, matamo-la; Nada sobrevive à reflexão.
In “Óscar Wilde, Aforismos”
Numa entrevista, Escher chegou a declarar que os seus assuntos eram por vezes muito irónicos, pois não podia deixar de brincar com as nossas certezas irrefutáveis. Para ele era, por exemplo, um prazer poder misturar duas ou três dimensões, plana e espacial, e brincar com a gravidade. Tinha um prazer enorme em questionar as pessoas sobre se tinham a certeza de que um chão não podia ser também um tecto, ou se estavam convencidas de que se passava para um plano mais elevado quando se subia uma escada. Estas e outras questões servem sobretudo para realçar a falibilidade da percepção humana e desafiar certas certezas frequentemente aceites como dados adquiridos. Num tempo de grande insegurança, em que nada é o que parece, faz cada vez maior sentido que se coloquem em dúvida algumas verdades consideradas irrefutáveis. Uma dessas questões poderá ser o facto de o processo criativo ser vulgarmente considerado como algo muito positivo e benéfico para o progresso cultural e científico da humanidade. O que aqui se pretende é considerá-lo em toda a sua ambivalência e duplicidade, para que certas ambições intelectuais, tanto no campo da Ciência como no da Arte possam ser criticadas.
As afinidades entre a Ciência e a Arte são inúmeras e variadas. Possíveis aproximações estabelecem-se vulgarmente tendo em conta certos aspectos positivos que conciliam as duas formas de conhecimento. Contudo, dada a ambivalência da própria natureza humana, fará todo o sentido realçar também a dualidade inerente a todo o processo criativo. Quando excedem os seus limites, tanto a criação artística como a científica poderão tornar-se fontes reais de perigo e destruição. O nosso tempo exige que tanto a Arte como a Ciência se devam constituir em actos éticos de autoconsciência. Para isso é necessário combater não só o excesso de orgulho do conhecimento, mas também alguns excessos de intelectualismo e esteticismo. É urgente desafiar certas certezas e ironizar acerca dos abusos da razão e da estética. Há que não ter medo de modificar o pensamento acerca de certas realidades que nos parecem inabaláveis e profundamente sólidas.
Sabe-se que o termo “Cientista” não apareceu antes de 1834 e que, em muitos romances e contos do séc. XIX, a palavra se refere ainda à figura de um criador que é uma mistura de artista, filósofo, artífice e investigador químico. Em “A Estranha Morte do Professor Antena”, Mário de Sá Carneiro afirma que “um grande sábio cria – imagina tanto ou mais do que o Artista. A Ciência é talvez a maior das artes – erguendo-se a mais sobrenatural a mais irreal, a mais longe em Além. O artista adivinha. Fazer arte é Prever. Eis pelo que Newton e Shakespeare, se não excedem, se igualam.”
No próprio subtítulo da obra de Mary Shelley, Frankenstein, or The Modern Prometheus (1818), é também evidente esta comparação. Aqui, a referência a Prometeu diz respeito não só ao deus da mitologia grega implicado no roubo do fogo aos deuses, mas também evoca a história de Prometeu plasticator, que dizem ter criado e animado a humanidade a partir do barro. Conhecimento e criação parecem, então, serem totalmente indissociáveis, estando constantemente presentes nas acções mais significativas e determinantes do destino da humanidade. A importância das suas consequências faz com que se desenvolva um forte sentido de responsabilidade capaz de colocar algumas dúvidas acerca dos processos de criação da Ciência e da Arte, deixando-se por vezes insolúvel a questão de saber se a busca de perfeição é louvável ou condenável e mantendo em aberto a possibilidade de poder ser ambas. Exemplo dessa ambiguidade é o conselho final de Victor Frankenstein ao seu amigo Walton: “Adeus, Walton! Procure a felicidade e fuja de todas as ambições, mesmo do desejo inocente de se distinguir na ciência. Mas porquê falar assim? Outros poderão triunfar onde eu falhei.”
A mente criativa, posta ao serviço da arte ou da ciência, tem uma enorme probabilidade de ser vítima da loucura. Desde Metropolis e The Cabinet of Dr. Caligari de Fritz Lang, Dr. Jekyll and Mr. Hyde de Victor Fleming, ou Doctor Strange Love, protagonizado por Peter Sellers, até à personagem de Dr. Hannibal Lecter, imortalizada por Anthony Hopkins, o protótipo do Cientista Louco não se destina somente a criticar certos excessos da Ciência. Todos estes indivíduos excêntricos são personagens de histórias de transgressão, que expõem o processo criativo como uma prática destrutiva afecta à ciência, à arte e até à política. Os exemplos literários e cinematográficos, que ajudaram a imortalizar estas figuras, apreenderam alguns dos aspectos mais comuns à actividade artística e científica. Ser criador significa, em muitas destas histórias, possuir uma atitude distanciada, viver em completo isolamento, ser atacado de demência maníaca – que separa o indivíduo das relações humanas normais – interiorizar um ideal obsessivo de objectividade e impessoalidade, tratar seres vivos como objectos das suas experiências e das suas teorias estéticas e não como objectos dos seus afectos, etc.
É de notar que tanto o artista como o cientista utiliza frequentemente o termo “experiência” para caracterizarem as suas práticas científicas e artísticas. O excesso de envolvimento nas suas experimentações produz frequentemente uma clivagem entre objectividade e afectividade que implicará uma cisão psíquica entre razão e emoção responsável pela desintegração da personalidade. O testemunho de Victor Frankenstein é sobre este aspecto esclarecedor. Diz-nos o cientista criado por Mary Shelley: “Um ser perfeito deveria manter sempre o seu equilíbrio e nunca permitir que a paixão ou um desejo passageiro lhe perturbasse a tranquilidade. Não creio que os estudos constituam excepção a esta regra. Se o trabalho tende para diminuir o afecto e o gosto pelos prazeres simples que nada deve perturbar, é porque os estudos são nefastos ao espírito humano.” Em A Ilha do Dr. Moreau (1896) de H. G. Wells, o Dr. Moreau é um escultor e cientista que pratica a arte da tortura com curiosidade científica, chegando a afirmar, em determinado momento, que “até hoje, eu nunca me preocupei com a ética da minha investigação.” Esta presunção em relação à actividade criadora é comum tanto ao cientista como ao artista. A atitude estética da “arte pela arte” traduz também este excesso de deslumbramento pelos valores e poderes da expressão artística que, por se colocarem acima de qualquer outros, produzem uma separação categórica entre a Arte e a Ética. As histórias de “Cientistas Loucos” não são somente enredos destinados a relatarem as desventuras de actos científicos falhados e consequente alienação mental dos seus autores. Acima de tudo, elas reflectem uma profunda crise da identidade artística, transformando-se em narrativas de auto-reflexão acerca das incertezas inerentes à actividade criadora. As suas personagens são artistas ou cientistas que são também vilões, autores do mal e perpetradores de acções que nos fazem reflectir sobre o dilema da responsabilidade artística.
Na sua obra intitulada Forbidden Knowledge (1996), Roger Shattuck fala-nos sobre o termo pleonexia dizendo-nos que significa “ir além da condição que lhe é devida”, podendo traduzir um impulso irresistível em ultrapassar os limites – particularmente os limites do conhecimento – mesmo correndo o risco de prejudicar os outros. Já Sigmund Freud, na sua obra “Civilização e seus Descontentamentos”, havia chamado a atenção para a existência de impulsos perversos irresistíveis e para a tendência constitutiva, no homem, para a agressão. Em “Para Além do Princípio do Prazer”, Freud tinha também suspeitado que operavam no ego outros instintos para além dos de auto preservação. Segundo o pai da psicanálise, existiriam duas espécies de processos constantemente activos na substância viva operando em direcções contrárias, uma construtiva e outra destrutiva. Estas forças contrárias dariam origem aos instintos de vida e aos instintos de morte, justificando-se assim a existência de certas tendências para além do princípio do prazer, tendências mais primitivas e independentes dele. Tudo isto parecia explicar a atracção do ser humano pelo proibido, o qual lhe provoca habitualmente um sentimento de felicidade mais intenso. Daí que, num conto de Edgar Allan Poe intitulado “The Black Cat”, se afirme, pela voz do narrador, que praticamos habitualmente uma má acção pelo simples facto que sabemos não dever praticá-la. Em “The Imp of Perverse”, um texto que é quase um tratado acerca da perversidade humana, Poe conclui:
“No sentido que aqui atribuo (a perversidade) é, na realidade, um mobile sem motivo, um motivo não motiviert. Debaixo das suas ordens actuamos sem finalidade compreensível ou, se esta parece uma afirmação de termos contraditórios, podemos modificar a proposta dizendo que, debaixo do seu impulso, actuamos pela razão de que não devemos fazê-lo. Em teoria, nenhuma razão pode ser mais irracional, mas na prática não há nenhuma mais forte. Com certas mentes e em certas condições chega a ser completamente irresistível. Estou tão certo de estar vivo como estou que o mal ou o terror que conduz a um acto qualquer é, com frequência, a única força invencível que nos impele, sim, que nos impele exclusivamente a continuá-lo. Esta tendência imperiosa de fazer mal pelo próprio mal não admite análise, nem solução com elementos posteriores. É um impulso radical, primitivo, elementar. Pode dizer-se –, e disso tenho a certeza –, que quando persistimos em certos actos é porque sentimos que não deveríamos persistir neles.”
Esta tendência negativa para o mal e a autodestruição, que inexplicavelmente se apodera do indivíduo em momentos totalmente imprevisíveis, revela a profunda duplicidade do carácter humano, que nunca será uno e indivisível, sendo por vezes vítima de instintos obscuros que podem conduzi-lo à morte. O famoso pensamento de Schopenhauer de que o fim da vida é a morte encontra aqui total justificação. Segundo a teoria de E. Hering, citada por Freud em “Para Além do Princípio do Prazer”, existem duas espécies de processos constantemente activos na substância viva operando em direcções contrárias, uma construtiva ou assimilativa e outra destrutiva e desintegradora. É natural, então, que todo o processo criativo seja determinado por esta sempre implícita duplicidade. Em “Eureka”, um tratado acerca das origens do Universo, Poe refere que “na unidade original da coisa Primeira reside a causa Secundária de Todas as Coisas, com o Germe da sua Inevitável Aniquilação.” A ideia de que na criação está presente a ideia de destruição é partilhada também por Camille Paglia na obra “Sexual Personae”. Aqui, a autora defende que a Arte tal como a Natureza possui uma natureza ambivalente, simultaneamente criadora e destruidora, comparável à Deusa indiana Kali. A força dionisíaca própria da Natureza justifica a presença de uma energia agressiva na Arte. Segundo Paglia, “a arte é ordem. Mas a ordem não é necessariamente justa, simpática e bela.”
Que o homem não é realmente uno mas duplo é, como se sabe, a grande conclusão da ambiciosa experiência científica e psíquica de Dr. Jekyll, um dos mais famosos cientistas loucos da história da Literatura. Revelar uma constituição multiforme, incongruente e cheia de independência e reconhecer a verdadeira e primitiva dualidade humana, sob o aspecto moral seriam os grandes motivos das suas descobertas. Ao querer separar artificialmente, por meios químicos, o bem do mal, as experiências fracassadas de Jekyll provaram que estes dois lados opostos serão sempre indissociáveis. O seu reconhecimento final é esclarecedor: “Constitui uma maldição do género humano que estes dois elementos estejam tão estreitamente ligados; que no âmago torturado da consciência continuem a degladiar-se.”. Outro exemplo duma personalidade dual e profundamente contraditória é o famoso Hannibal Lecter criado por Thomas Harris em “The Silence of The Lambs”. Lecter era ao mesmo tempo um homem culto e um canibal. Este psiquiatra conceituado, que fizera inúmeras avaliações psiquiátricas para tribunais de Maryland, Virgínia e outros da Costa Leste dos Estados Unidos, era um investigador activo que colaborava com várias publicações para prestigiadas revistas da área, destacando-se um excelente artigo para o Journal of Clinical Psychiatry. Tinha gostos artísticos sofisticados que se manifestavam pelo seu interesse pelos estudos anatómicos de Géricault para Le Radeau de «La Meduse», pela sua atenção aos pormenores do Esfolamento de Mársias de Ticiano, exposto na National Gallery de Washington, e pelo seu gosto musical pelas Variações de Goldberg de Glenn Gould. Ele próprio era um artista que decorou a sua cela com desenhos do Palazzo Vecchio e do Duomo de Florença, pintados de memória a partir de vistas do Belvedere. Mas além de possuir uma capacidade de percepção e penetração em relação aos fenómenos da psicologia humana, Lecter era um assassino de nove pessoas, todas elas mortas em actos de canibalismo. Também em Seven, o célebre filme de David Fincher, existe um serial killer metódico e culto que deixa no local do crime algumas pistas que incluem citações de Paradise Lost de Milton – entre as quais se encontra a frase “long is the way and hard that leads out of hell to light” – tendo por fim castigar aqueles que cometeram um dos pecados mortais.
Esta cisão psíquica tem sido motivo de grande interesse para muitos escritores e artistas do séc. XX, entre os quais se pode contar Alfred Hitchcock, que um dia confessou o facto de sempre se ter interessado por uma mentalidade tipo Jekyll and Hyde e que os seus filmes sobre a duplicidade ou divisão da personalidade eram: Shadow of a Doubt, Strangers on a Train, Psycho e Frenzy. Tudo isto nos ajudará a entender a mentalidade obsessiva tipo Jekyll-Hyde do próprio Hitchcock, um homem que era capaz de demonstrar a mais pura generosidade para com criados e familiares, mas que também possuía uma obsessão selvagem por mulheres bonitas de quem se sentiu separado para sempre. Casos como o do realizador de cinema americano abundam em todas as áreas artísticas. Numa obra recentemente publicada com o título Picasso, My Godfather, a sua autora Marina Picasso, neta do artista, procede a uma série de revelações acerca das características mais negras e menos conhecidas da personalidade de Picasso. Ficamos a saber, por exemplo, que Picasso prestava pouca atenção aos seus netos, por vezes nem os recebia e mandava dizer que o Mestre estava a trabalhar ou a dormir. Este comportamento, parece ter estado na origem do suicídio de um deles, que bebeu uma garrafa de lixívia, uma semana depois de o avô ter morrido. Aliás, a própria mãe de Picasso chegara a dizer um dia que nenhuma mulher podia ser alguma vez feliz com o seu filho Pablo. Marina descreve-o como um homem diabólico, que era incapaz de amar, sendo uma combinação de poder, mortificação e incomunicabilidade. Era um demiurgo inacessível que tratava as pessoas como se fosse algo que ele podia manipular de acordo com o humor do momento. Consta que tratava melhor a sua cabra de estimação que os seus netos, mandando dizer, sempre que não os queria receber, que “O Sol não quer ser perturbado”. Paulo, seu filho, era uma peça do puzzle de Picasso, tal como cada uma das suas pinturas. Acerca do vampirismo de Picasso, Marina confessa que: “A demanda de Picasso pelo absoluto ocultava uma vontade implacável de poder. O seu extraordinário trabalho exigia sacrifícios humanos. Ele apoderava-se de qualquer um que se aproximasse dele e lançava-o no desespero. Ninguém na minha família escapou a este sufoco. Ele precisava de sangue para assinar cada uma das suas pinturas: o sangue do meu pai, do meu irmão, da minha mãe, da minha avó, e o meu; o sangue de todos aqueles que o amavam – pessoas que pensavam que amavam um ser humano, quando em vez disso amavam Picasso.”
O lado negro do génio é tão real quanto a sua surpreendente capacidade criadora. Em Memórias, Sonhos e Reflexões, Carl Gustav Jung chegou a concluir que “uma pessoa criativa tem pouco poder sobre a sua própria vida. Ela não é livre. Está cativa e é conduzida pelo seu demónio.” Além de outros, o testemunho de Stephen King poderá servir-nos de referência, quando numa entrevista afirmou que o lobisomem em nós nunca está longe da superfície e que ele próprio bem podia ter usado uma espingarda de mira telescópica para resolver os seus demónios, mas que, em vez disso, usava um processador de texto. A seguinte confissão do famoso escritor americano revela-se a este propósito muito significativa: “O meu lado destrutivo tem uma grande expressão nos meus livros. Penso que se trata do lobisomem em mim. Mas a verdade é que adoro fogo, adoro destruição. É óptimo, é negro e é excitante.” Também propósito do seu livro The Stand, King afirmara que, nesta obra, tivera oportunidade de destruir toda a raça humana, e que isso representara para si um enorme divertimento.
A atracção pela obscuridade dos instintos humanos mais primitivos sempre foi comum a muitos autores que produziram as mais interessantes obras na história da literatura e da arte. Para eles, a questão mais importante não é a virtude de uma dada personagem, mas o génio e a força da mente empregues na perpetração de actos perversos. Daí que Joseph Conrad utilizasse a expressão “o fascínio do abominável” e que Melville tenha concluído após ter escrito Moby-Dick: “I’ve written a very wicked book and I feel spotless as a lamb.” O impulso da criação pode tornar-se simultaneamente num impulso perverso. O impulso criativo transforma-se num incontrolável ímpeto destrutivo devido à crueldade de um heroísmo, cujos ideais são simultaneamente governados por forças agressivas de ambição e grandiosidade, assim como por um profundo desejo de destruição. Este constitui o verdadeiro paradoxo do acto criativo, que cria destruindo e destrói criando. Na sua conhecida Teoria Estética, Adorno defende que “as obras de arte são negativas a priori em virtude da lei da sua objectivação; causam a morte do que objectivam ao arrancá-lo à imediatidade da sua vida! A sua própria vida alimenta-se da morte.” Nisto reside o profundo paradoxo da criação que frequentemente lança o artista na inevitável contradição de criar destruindo e de destruir para criar. Daí que alguns autores tenham construído ficções onde se critica o papel do escritor, do artista ou de qualquer criador, tendo todos eles, por intenção, colocar persistentemente em dúvida o próprio processo criativo. Na obra de Thomas de Quincey, “Do Assassínio como uma das Belas Artes”, fala-se de um coração de tigre, escondido sob o mais insinuante e enganador refinamento, afirmando-se ironicamente que o fim único do assassínio, considerado como arte, é, precisamente, o mesmo da «Tragédia» como Aristóteles a concebia, isto é, «purificar o coração por meio da piedade e do terror». Como diz Lyall Watson, em Dark Nature, “o mal é uma força da Natureza e uma realidade biológica, algo de universal como Milton, Dante, Goethe e Stevenson. Já o tinham entendido. Pode ser assustador e até chocante enfrentar o nosso lado negro, mas é extremamente necessário.” Ligadas pela consciência desta urgência, ciência, arte e literatura têm tudo a uni-las e nada a separá-las.
Caminhar abertamente para o abismo parece pois, um caminho natural para a raça humana em geral e para os artistas em particular.
Onde começa uma e acaba a outra?! – Será possível criar “obra-prima” sem desafiar as leis da normalidade? – O que é afinal a normalidade?
Porque de quando em vez também me apetece escrever sobre coisas sérias...