Na solidão da aldeola serrana (ou terá sido lá pelo meio do Alentejo?) o homem velho, mais rugas do que idade, levantou a cabeça cansada.
E que faz El-Rei aqui
Por estas Terras de Além?
- Venho ver quem é ninguém.
Mas Senhor, aqui tão longe,
Só há fome... só há pó...
- Venho ver quem está tão só.
E disse El-Rei esta fala:
- Venho ver quem sofre e cala.
Lá na Corte todos pedem
Lá na Corte todos comem
Mas se aqui eu vejo fome
Também vejo o que é ser Homem.
Deixámos o leitor aqui na Sé, 620 anos atrás, em plena boda que el-rei D. João I fizera com sua mulher. Na história do Mundo, seis séculos nada são. No entanto, para este Povo que se afirmou com este Rei, foi o tempo para se fazer e desfazer um império; dividir ao meio o Mundo que havíamos descoberto ou iríamos ainda descobrir; mas tempo também para se perder o orgulho em sermos quem somos e deixarmos alimentar as aves da descrença, tão parecidas com aquelas que dantes piavam por Castela.
Tempo de haver Reis que defendiam a sua terra, ao lado dos mais humildes; tempo de haver outros que fugiam com a Corte para o Brasil. Só os primeiros são Reis.
E entrámos na Sé, apreciando o altar de prata, que D. João I não viu, pois é do século XVIII, uma das primeiras obras de Nicolau Nasoni. Em 1809, com outro João, o sexto, fugido no Brasil, a soldadesca de Soult, especialista em pilhagens, por aqui passou, mas também não o viu. Um sacristão habilidoso não funcionou como ave da descrença: teve a habilidade de o cobrir com uma camada de gesso.
E que faz El-Rei tão longe
Por esses Brazis distantes?
Já não é como era dantes.
O que faz El-Rei não sei
Precisamos de outro Rei.
Cá fora, para os lados da Calçada de Vandoma, o perfume barroco da galilé, mais uma jóia de Nasoni, dando um toque de elegância à estrutura norte do edifício.
A este italiano deve o Porto – e não só – um património artístico de incalculável valor: o Paço Episcopal de que falámos, Igreja dos Clérigos, Palácio de S. João Novo, fachada da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, Palácio do Freixo, Casa de Despacho da Ordem Terceira de S. Francisco, casas, fontanários, esculturas em pedra...
Fora do Porto, entre outras, Igreja do Senhor de Matosinhos, Nossa Senhora dos Remédios em Lamego, Palácio de Mateus em Vila Real...
E na calçada de Vandoma deparei com um cubelo e um pequeno trecho da Cerca Velha, reconstruídos, na zona onde outrora se situava a Porta. Trazida por cavaleiros gascões e franceses, segundo dizem, a imagem de N.S. de Vandoma estava recolhida num nicho da Muralha e dera o nome à Porta e ao Arco. Quer uma sugestão? Volte a entrar na Sé e admire a sua beleza. Está mesmo ao lado do altar de prata de que falamos há pouco, capela de S. Vicente.
É Nossa Senhora de Vandoma que vamos encontrar nas Armas da cidade, ladeada por dois Castelos, com a legenda Civitas Virginis (Cidade da Virgem), inalterada de 1012 a 1813.
Por aqui era a saída da cidade para o Norte: as Eiras, o Corpo da Guarda, a Rua Chã.
Entre esta porta e a de Sant'ana ficava a de S. Sebastião, com acesso à importante Rua do Souto, que atravessava o Rio de Vila e, no século XIII, já chegava ao Olival...
Um dos romances de Alberto Pimentel," O Arco de Vandoma", decorre nesta zona.
-Oh minha Senhora, estão a deitar abaixo o Arco!!!
-Que dizes tu, mulher?
E deitaram mesmo. Estávamos em 1855.
Vinte anos antes - dois anos, apenas, depois do fim do Cerco - uma cidade comovida e em luto fizera um cordão desde a Praça da Ribeira até à Lapa, último destino do coração de um grande Rei. Em cada português que respeita a Liberdade ficou também um bocadinho desse coração generoso.
Mas no centro, bem no centro do Brasão do Porto, ficou inteiro.
E que faz El-Rei querer
Ter aqui seu coração?
Coisa assim eu nunca vi...
- Aqui os homens não cedem.
Aqui dão mais do que pedem
Vou ficar melhor aqui.
No próximo episódio também ficaremos por aqui. Na companhia de Vímara Peres.
(continua)
Colaboração de:
Fernando Novais Paiva – autor do texto e das fotos
Etiquetas: O Morro e o Rio