Na vila havia duas "grandes" famílias, ou melhor, dois "nomes", que através dos casamentos entre eles e dos irmãos e primos, eram os proprietários da quase totalidade das terras do Concelho. Eram os grandes empregadores e para eles trabalhavam nas suas terras a quase totalidade dos pobres.
Mais à frente falaremos das condições em que esse trabalho era prestado.
Uma dessas famílias designava o Presidente da Câmara, que se manteve nessas funções anos e anos, acabando por levar um "pontapé para cima", pois passou a Governador Civil de Évora e, para azar dele, era naquelas funções que se mantinha quando foi o 25 de Abril de 1974.
Enquanto exerceu as funções de Presidente da Câmara da vila, não dei por se terem feito quaisquer obras na mesma.
O padre, o professor primário e o Cabo da GNR, gozavam dum estatuto especial. Havia também o regedor, mas ninguém lhe ligava nenhuma.
Nos "remediados", ou seja na "classe media", podíamos considerar três grupos:
- Os pequenos lavradores, normalmente donos de uma herdade e que traziam mais uma ou duas de renda. Incluímos aqui os feitores dos lavradores ricos, que dispunham de "carta branca" para administrar, comprar e vender cereais e gado, bem como contratar e despedir trabalhadores rurais. Estão a ver ...
- Os logistas, artífices proprietários de oficinas, ou não, e os donos dos cafés. Havia três cafés, dois frequentados pelos remediados e o outro pelos ricos. O proprietário deste último não era um "salazarista" e, por isso, chegou a ter chatices. O decano de uma dessas "famílias", era já bastante idoso e muito curvado, usando uma bengala. Um dos meus primos chamava-lhe o "ti stick", devido à sua postura. Só bebia água do Luso, pensava ele, pois o proprietário do café, piscando-nos o olho, dizia-nos:
"Queres água do Luso, não é? Bebes água da torneira e pagas como se fosse Luso". Convém esclarecer que, nesse tempo, só havia garrafões, de modo que, nos cafés, a água era vendida a copo.
Nesse café, que tinha fabrico próprio, faziam dois bolos, um a que chamavam "salazares" e outro a que chamavam "jesuítas". Quando alguém de fora lhe perguntava qual a diferença entre os dois, pois ambos tinham o mesmo aspecto, a resposta era invariavelmente a mesma: "são os dois da mesma massa".
Num dos cafés dos remediados, que se situava na Praça da Câmara, reuniam-se de preferência os caçadores.
No outro, situado quase frente ao dos ricos, reuniam-se os “esperantistas”. É certo que o introdutor do interesse pela língua, era um notório opositor ao Governo, mas eu naquela altura, não só não percebia o elevado número de interessados na aprendizagem do “Esperanto”, nem a sanha com que os mesmos eram vigiados pela PIDE.
Só três cafés, perguntarão? Sim, o resto eram tabernas, frequentadas pelos pobres, que ali se entretinham jogando "sueca" ou dominó, nos seus tempos livres, que praticamente não existiam, mas havia os desempregados (que bebiam "fiado") e os que já não podiam trabalhar.
- Os empregados na Câmara e outros organismos do Estado e, mais tarde, os de uma Fábrica de Moagem, que passou a fornecer electricidade à vila, substituindo os candeeiros a petróleo e o “tipicismo” do homem que os acendia, acompanhado por um ajudante que carregava a escada.
(continua)