sábado, dezembro 16

Ricos, remediados e pobres 3

O mercado era na praça principal, a da Câmara, mas ali não se vendia peixe por ser raro haver, não só pelos hábitos alimentares dos alentejanos: "peixe não puxa carroça", ou "Jesus Cristo encarnou, não empeixou", como por ser difícil fazê-lo chegar em boas condições, pelo que se destinou à sua venda uma pequena dependência normalmente fechada.
Quando havia peixe, um pregoeiro, do cimo das ladeiras da vila, dava conhecimento do facto à população. Também anunciava todo e qualquer assunto que fosse do interesse geral, como a realização de uma sessão de cinema.

O cinema chegava numa viatura e montava-se uma enorme tela na Praça acima citada. Uma hora antes de começar a sessão, a população interessada deslocava-se para lá, cada pessoa levando a sua cadeira, ou mocho. Eu levava normalmente um mocho, por ser menos pesado. Os filmes, de que já não me lembro os nomes, eram sempre os mesmos, mas era o que havia e serviam para quebrar a monotonia e passar o tempo. Um era sobre o 28 de Maio do qual relembro apenas a letra da música: “os marinheiros/ aventureiros/ são sempre os primeiros/ na terra ou nos mares/ ao verem as belas/ pelas janelas/ colhem logo as velas/ para as conquistar”
O outro filme era sobre a Guerra Civil de Espanha e referia-se ao episódio da resistência oferecida pelos franquistas à conquista do Alcazar de Toledo, na altura uma Escola Militar de futuros oficiais do Exercito Espanhol. Tudo propaganda Salazarista e Franquista.

As mercadorias, bem como o correio, chegavam pelo caminho de ferro, ou pelas duas empresas de camionagem. A Estação da CP fora construída a 5 kms da vila para que o traçado do caminho de ferro não afectasse as herdades dum rico proprietário. As pessoas tinham que palmilhar o caminho, já que só havia uma carroça que ia buscar o correio e que cobrava dinheiro a quem levava, mas onde não cabiam mais de seis e mal instaladas.
As carreiras de camionagem eram a Setubalense, que garantia a ligação com Lisboa e a do Capucho que assegurava a ligação com Évora. A chegada das camionetas à Praça era um acontecimento. Todos os "basbaques" iam ver a sua chegada e admirar as viajantes.
A solução encontrada para a escassez da gasolina, motivada pela crise internacional durante a segunda guerra mundial, foi a utilização de veículos movidos a gasogénio, combustível mais barato. Para ser instalado, o gasogénio requeria um equipamento acoplado na traseira dos veículos, onde se colocava carvão vegetal que, ao queimar-se, produzia um gás combustível constituído principalmente por monóxido de carbono. Isto é: em vez de gasolina ou gasóleo, andava-se a água e carvão. Talvez seja a solução para os dias de hoje…


(http://forum.autohoje.com)

Quando chegou a altura de ir para a escola lá fui. Eu era dos privilegiados, pois tinha botas, mas muitos iam descalços. Com aquele frio, todos tínhamos frieiras.
Os filhos dos ricos não a frequentavam. Tinham professoras em casa e depois só lá iam fazer o exame da 3ª classe. Era obrigatória a frequência da escola até à 3ª classe, mas, ainda comigo lá, veio uma determinação do Governo a tornar obrigatória a sua frequência até à 4ª classe, com um exame final. Esta determinação gerou uma onda de protesto entre os lavradores porque, diziam eles, ficavam sem "ajudas" para o gado, isto é, os pastores deixavam de ter quem os ajudasse (gratuitamente) no pastoreio.
Após o exame da 4ª classe, a maior parte dos alunos ficava-se por ali, pois ainda havia que fazer o "exame de admissão", como se chamava, para ingresso no ensino secundário. Era extremamente difícil e muitos faziam o exame de 4ª classe num ano e o exame de admissão no outro.
Depois, os mais ricos iam para um colégio em Santo Tirso, ou para Santarém. Dos remediados, a maior parte ia para o Liceu de Évora, para a Escola de Regentes Agrícolas (Mitra), ou para a Escola Comercial e Industrial, conforme a profissão e as posses dos pais. Era caro prosseguir os estudos, pois a falta de ligações com Évora, ou melhor a inexistência de horários adequados, obrigava os alunos a ficarem alojados num quarto da cidade.

(continua)

4 Comentários:

Às 16 dezembro, 2006 15:49 , Blogger H. Sousa disse...

Pondo a leitura em dia. Excelentes crónicas. Sempre bom recordar, para não perdermos pontos de referência.

 
Às 16 dezembro, 2006 16:48 , Blogger Peter disse...

Henrique, os meus filhos andaram todos na Escola Primária Oficial e depois na Secundária, tal como eu. A minha filha ia sózinha, por vezes extremamente cedo, para a Escola Secundária, porque nem eu, nem a mãe a podíamos levar.
Nada de "merdices" de natações, judo, ballet, etc.
Hoje, os tempos são outros e os meus netos têm os seus pais e eu não tenho nada a ver, nem quero interferir na sua educação.
É apenas para ficarem a saber como viveu o AVÔ (não tenho complexos de idade) quando tinha a idade deles.

E assim hoje vou chegar ao fim das minhas "crónicas de infância". Não sei ainda se será só o fim delas, ou também o do blog.

 
Às 16 dezembro, 2006 20:14 , Blogger Papoila disse...

Peter é isso temos de passar o testemunho :) Estou a gostar muito de ler estas tuas crónicas. O Natal no Toto tem hoje o segundo capítulo mas garanto-te ser uma verdadeira história de Natal.
Beijo

 
Às 18 dezembro, 2006 09:50 , Blogger Maria Carvalho disse...

Estou a gostar de ler. Interessante. Sei que a minha avó estudou em casa também ( tempos mais antigos do que os que relatas) e depois veio para o Colégio de Odivelas, como acontecia com filhas de militares. Beijos. Vou ler o seguinte.

 

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