O homem de vermelho
Estava encostado á parede e deveria ter cerca de 30 anos, um pouco menos, um pouco mais. De colete, uma Tshirt vermelha que nunca deveria ter sido lavada e umas calças idênticas. Louro, cabelo curto e de pêra e bigode também aparados. Fiquei com a ideia que deveria ser inglês. Estava descalço e vestia um colete cinzento por cima da Tshirt. Aos pés uma mochila sebenta e ao seu lado um pequeno recipiente de plástico com água e um papel, serviam de mesa a um cão que dormitava indiferente a tudo e todos.
O homem fumava um cigarro com filtro e estendia a mão, onde jaziam algumas moedas de cêntimos.
Dantes eu diria que "titilintavam", agora nem isso fazem. Foi hoje o último dia para trocar as antigas notas de 20 escudos no Banco de Portugal. Quem é que se mexe, com este calor, para trocar uma bonita nota por 10 cêntimos? Eu não, prefiro ficar com a nota, ao menos serve-me como marcador de livros.
Entre nós, a rua por onde desfilavam mulheres jovens, cada vez mais bonitas, com decotes generosos e seios espantosos. A minha companhia disse-me que as mulheres andavam em feroz competição. Os homens escasseiam e elas têm que enfrentar uma concorrência cada vez maior. Enquanto trocávamos impressões, dois jovens nitidamente "gays" sentavam-se numa mesa ao lado.
- "Vês o que te disse? Olha o rapaz de azul, um autêntico desperdício."
Tive de concordar.
"Por isso, elas têm de exibir os seus dotes. É a concorrência, uma concorrência feroz", continuava ela.
"Bem, é assunto que não me preocupa, não me afecta", respondi afagando-lhe o braço.
"Também não é preciso estares a olhar."
"Não posso estar aqui de olhos fechados, como te poderia ver?"
"Desculpas, já te conheço."
Ao nosso lado, três francesas de exportação, daquelas para quem não valia sequer a pena olhar. Às tantas, uma delas, já "entradota", levantou-se e foi dar umas moedas e um bolo ao "homem de vermelho". Este mirou as moedas com ar de desprezo, meteu-as no bolso do colete e deitou o bolo para o papel que servia de prato ao cão, o qual continuou a dormir, ou a fingir que o fazia.
Tirou do mesmo bolso uma lata de cerveja, de que beberricou um pouco, enquanto passava um negro a quem julgo que pediu um cigarro, mas este nem se dignou olhar para ele.
Iniciou depois uma operação: cortou com um canivete parte do filtro dum cigarro, retirou-lhe o papel branco que o envolvia e voltou a meter nele o interior do filtro.
As miúdas continuavam a passar…
O homem resolveu comer metade do bolo do cão, que não protestou, preferiu continuar a dormitar. Depois comeu a outra metade, apanhou o recipiente de plástico, despejou a água, parte para cima do cão, pegou na mochila e foi-se embora.
Já quase ao virar da esquina o cão resolveu levantar-se e, com o rabo entre as pernas, seguiu o rasto do homem.
Deve ter pensado, se por acaso os cães pensam: "mais vale este que nada".