Se a Sé foi o coração do Porto, onde o descampado de há dez séculos germinou uma grande cidade, o rio foi o seu pulmão, por onde o Porto respirou, se abriu e desenvolveu.
O Morro e o Rio disseram onde era. O Portuense foi dizendo quando e como havia de ser. No Morro viveu. Com o Rio conviveu, com carinho e amizade como se por inteiro lhe pertencesse, desculpando-lhe as birras e maus humores, reconhecendo a dificuldade do seu percurso, tanto ou maior que a vida da própria cidade, adivinhando o seu próximo encontro com o mar, palco de dramas e naufrágios sucessivos.
Mas foi por aí que o Porto se ligou ao Mundo. Fácil ou difícil, foi por essa barra estreita que entraram os Cruzados, que Pedro Pitões, em Pena Ventosa, incentiva a conquistar Lisboa. E foi por ali, séculos passados, que saíram os barcos, com homens e mantimentos, rumo a Lisboa também, desta vez com o auxílio possível ao ainda Mestre de Aviz, cercado pelas tropas de Castela.
É ainda por esta barra, 450 anos depois, que numa operação desesperada as forças liberais rompem o cerco - sim, o cerco do Porto de 1832/33- desembarcam no Algarve, para dias depois entrarem em Lisboa, consagrando a vitória de D. Pedro IV.
Mas há a outra história, a do dia a dia, sem datas nem reis, em que a guerra é bem outra. Mas onde também a vida se joga, porque o rio de amigo passou a carrasco, cobrando o seu preço sem pena nem dó.
Com a zona ribeirinha como local de trabalho onde tudo converge, da estiva aos estaleiros, da tripulação do barco às hospedarias e a todos os meios de transporte, é o rio que dinamiza a cidade, que cria ao portuense o amor ao comércio, o gosto pelo risco, o espírito empreendedor. Mas é toda a região norte que também empurra, com os seus produtos que é preciso escoar pela barra fora; e os outros, de que carece e que vai receber na volta.
E a população do Morro extravasa a Cerca Velha; preenche mais tarde o espaço das Fernandinas; e hoje já mal se lembra que a sua Torre dos Clérigos ficava de fora...
Atravessar o Rio, ligando as duas margens, permitindo o trânsito de pessoas e coisas, foi desde sempre o terrível desafio colocado ao habitante do morro. Mas se por aqui passava a Via Romana, se Calem e Portus se situavam por estas bandas, então a passagem mais simples era mesmo esta – e daí derivou a localização de tudo o resto.
Foi preciso esperar por 1806 para haver uma ponte das barcas com carácter permanente: nasceu com má sina; três anos depois, 29 de Março, 4ª feira de cinzas, uma multidão alucinada, fugindo de Soult, era engolida pelo Rio, desta vez inocente. A tragédia ficou registada para sempre: o desastre da Ponte das Barcas.
1843 : A Ponte Pênsil ; 1886 : A Ponte de D. Luís. As duas margens ligadas, finalmente, por uma ponte que ainda hoje nos orgulha.
ANO : 2007
O Morro - A velha ponte de D. Luís, maravilha de resistência e harmonia, adaptou o tabuleiro superior ao metro e mantém o inferior, como antigamente, para pessoas e viaturas, garantindo o trânsito local entre as margens vizinhas.
Arrábida, Infante e Freixo encarregam-se de tudo o mais, retirando do Morro o movimento febril que até 1963 (inauguração da Arrábida) a Ponte de D. Luís, sozinha, garantia.
O Bispo continua a viver na zona onde sempre teve a residência, muito mais respeitado que nos tempos em que era Senhor da Cidade.
O Rio - Aquele barra não permitia mais nada.
O porto de Leixões (1895) esvaziou a Ribeira que, lentamente, se converteu ao turismo, como o próprio Rio que algumas barragens domesticaram.
O Morro e o Rio
Dois grandes Senhores.
Reformados? Os grandes Senhores não se reformam. Nem morrem.
Oh velho tristonho, de cara enrugada
Quem és afinal?
Eu sou este morro, ventoso, rochoso
Com porta fechada se alguém não me agrada
Mas sou Portugal.
Andei pelo mundo, já fui marinheiro
Em barco de vela.
Lutei com D. Pedro, João o Primeiro
Mas não por Castela
O tempo do Bispo foi duro p'ra mim
Então disse não
Mais vezes que sim.
Da Corte não gosto, ao fim e ao cabo
Que fiquem lá longe, que vão p´ro diabo
Teimoso e sisudo. Pois é. Sou assim.
E tu, Rio Douro, que vens das Espanhas
Ninguém te parou?
Eu não me detenho, conquisto sozinho,
Descubro o caminho perfuro as entranhas
Cheguei, aqui estou.
Custoso percurso, difícil entrada
Nas águas do mar.
Servi de fronteira, servi como estrada
Com pouco a cobrar.
Embora não saibam e tal não pareça
Se o Morro foi Porto
A mim me agradeça.
Porque eu fui a via que trouxe o progresso
Mas nada vos peço nem nada mais digo.
Fui bruto por vezes. Mas sou vosso amigo.
F I M
(Fernando Novais Paiva)
NOTA FINAl
Chegados ao fim deste percurso, começado a descrever a 28 de Dezembro do ano passado, cumpre-me agradecer os diversos comentários, geralmente motivadores, que foram sendo publicados no decorrer dos episódios. Optei por só agora o fazer, de forma colectiva, para não cair na situação desagradável de responder a uns, ignorando outros - tanto mais que não foram postas questões que aconselhassem esclarecimento directo.
Para o meu amigo Peter aí vai um abraço. Sem o seu convite não teria tido o prazer de escrever estes episódios, na base do vídeo que o meu tempo livre me estimulou a fazer.
Algum trabalho também teve a preparar a sua publicação. Mas fê-lo com gosto. Como com gosto vive a gestão diária deste blog.
Aos outros dois "proprietários" um abraço também. Em certa medida fui um intruso que gozou da vossa anuência.
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