O PORTO: O MORRO E O RIO - APENDICE Nº 2: TRES FILHAS EM CELANOVA
Quem entrar na Galiza, pelo Gerez ou Lindoso, a caminho da velha cidade de Orense, vai encontrar, a 30 ou 40 km da fronteira, a povoação de Celanova, célebre pelo seu antigo Mosteiro de S. Salvador, fundado por S. Rosendo em 936. Festeja-se agora o Ano Jubilar (907 - 2007) em que se cumprem 1100 anos do nascimento do Santo, curiosamente com berço na zona de Santo Tirso, hoje terras de Portugal.
Igreja de grandes dimensões, planta em cruz latina de três naves, magnífico retábulo, dois coros e órgão, tudo se conjuga para celebrações religiosas e concertos, em que o público mistura devoção com o prazer pelo espectáculo. O mosteiro desenvolve-se na base de dois claustros: um grande, processional, barroco do Séc. XVI, contíguo à Igreja; outro, tipo balcão, terminado em 1722, neoclássico, que possibilita o acesso às celas situadas entre pisos, popularmente conhecido por “poleiro”.
Em fins de 1386, dia 1 de Novembro, o mosteiro de então acomodava quatro hóspedas distintas, vindas há pouco de Santiago. Apesar de ser dia de finados, olhos e ouvidos estavam dirigidos para Portugal, não para os lados da Serra de Xurés mas para uma pequena terra desconhecida, Rio de Mouro, junto ao Rio Minho, entre Monção e Melgaço.
Aí, o Rei de Portugal, D. João I, acordava com o Duque de Lencastre a forma de fazer guerra a Castela, inimiga comum, depauperada pelo desastre de Aljubarrota. Mas dizia-lhe também qual das suas filhas, alojadas em Celanova, tinha escolhido para sua Rainha.
João de Gand, quarto filho de Eduardo III de Inglaterra, contraíra o seu primeiro matrimónio em 1359, com Branca, falecida dez anos depois e de quem herdara o Ducado de Lencastre. Filipa e Isabel, 26 e 22 anos, frutos deste casamento, acompanhavam o pai, mas só a mais velha estava em Celanova; a outra, já com segundo marido e em adiantado estado de gravidez, achara mais prudente ficar em Santiago.
João, agora Duque, só fica viúvo durante dois anos: em 1371 casa com Constança, filha de Pedro I de Castela, sua herdeira na ausência de descendentes varões. E é nessa qualidade que procurava defender os seus direitos após a morte do pai, assassinado pelo seu meio-irmão Henrique de Trastâmara. Catarina, agora com 14 anos, filha do casal, aguarda também em Celanova notícias de Rio de Mouro.
A terceira filha alojada no mosteiro tem a idade de Filipa. Mais uma meia-irmã, esta fora do matrimónio, desporto muito em voga na época e que o Duque praticava com mestria. Chama-se Branca e já é casada...
Constança, madrasta e mãe, também estava atenta. Só duas podem ser escolhidas. Teria preferências?
O Duque desembarca na Corunha em Julho, passeia até Santiago e Orense, combina as guerras e casamento de Filipa com D. João e, já no fim do ano, manda a filha para o Porto com comitiva real. Desagradado com os atrasos, ao que se julga, não assiste nem às bênçãos, a 2 de Fevereiro, nem às bodas, quinze dias depois. E já em Bragança passa um Inverno rigoroso que lhe reduz o efectivo a 1.200 ingleses, um terço dos que tinha trazido.
Em meados de Março agrupa-se o exército invasor, com a chegada de 9.000 homens de armas comandados por D. João, acompanhado de sua mulher, como que prolongando uma lua-de-mel que tinha sabido a pouco. Cumprimentos a pai e madrasta, adeus ao marido e lá vai Filipa agora para Coimbra, já grávida, esperar mais uma vez por D. João, enquanto este se dá ao luxo de invadir Castela, ainda não tinham passado dois anos de Aljubarrota. Bonito.
Mas D. João, o de Castela, lambia ainda as feridas enquanto continuava a dar tratos à imaginação para tentar perceber por que não era Rei de Portugal e dos Algarves. Fugindo sempre à batalha campal, forçando uma guerra de cercos e de pequenas escaramuças que a nada conduziam, perdeu uma soberana oportunidade de melhorar os seus níveis de auto estima, considerados já nitidamente alarmantes.
Ao fim de 10 semanas as tropas regressavam a Portugal por Almeida.
Numa guerra sem vencedor no terreno, quem ganhou e quem perdeu?
D. João de Castela, ao passar de invasor a invadido, não ficou com razões para sorrir. Três anos depois caiu do cavalo e morreu.
D. João de Portugal cumpriu o contrato com o sogro e levou a guerra a casa do inimigo. No regresso, já a caminho de Coimbra, em Paços de Curval, Terra de Santa Maria, ia morrendo de febres. Dª Filipa, com o susto, abortou.
O Duque estava a chegar a Trancoso e já recebia emissários a propor-lhe tréguas, firmadas com o casamento da filha Catarina (14 anos) com Henrique III (7 anos).
Mas a guerra ficou-lhe cara, a bolsa vazia e a mulher não gostou: não seria ela a sentar-se na cadeira do trono.
Filipa e Catarina sentaram-se, e bem, cada uma na sua. As duas venceram.
Filipa ganhou ao ser escolhida por um Rei. E continuou sempre a ganhar.
Catarina começou logo a perder para a irmã, serviu de moeda para secar as pretensões da mãe e deram-lhe para marido um miúdo de sete anos, que a história cognominou de El-Doliente. Sete anos depois começou a ganhar: casou, foi Rainha, enviuvou e morreu como regente em nome de seu filho D. João II.
Camões não se esqueceu das duas:
Dar os Reis inimigos por maridos
Às duas ilustríssimas Inglesas
Gentis, fermosas, ínclitas princesas (Lus. IV, 47)
E as duas filhas casadas?
Branca teve razões para chorar: o marido, Thomas de Morieux, um dos comandantes do exército do pai, morreu em Castela. Recebeu a notícia em Coimbra, onde aguardava o fim da guerra e fazia companhia a Filipa.
Isabel, que já ia no segundo casamento, efectuou ainda um terceiro. Por uma questão de coerência, o consorte chamou-se sempre João, como o pai e o cunhado. Não correu riscos de troca de nomes, principalmente em momentos de maior intimidade.
D. João, o nosso, soube escolher.
Filipa, mais que uma época, marcou a História.
(Fernando Novais Paiva)
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