O PORTO: O MORRO E O RIO - 12º EPISÓDIO: VERDADE OU MENTIRA?
E agora, que vamos deixar o morro e iniciar a parte final deste percurso, voltamos a percorrer a Rua D. Hugo, envolta sempre num clima de tranquilidade e respeito, como se nada tivesse a ver com todo aquele emaranhado de outras ruas por onde temos andado. As casas que constituem o seu lado esquerdo fazem logo a diferença, como muito diferente será a classe social dos seus moradores. Não é a Sé da Rua Escura, das Aldas ou dos Pelames; mas o sentimento é igualmente forte: esta Rua não podia estar noutro sítio senão aqui.
A capela de Nossa Senhora das Verdades, particular e mal conservada, faz esquina com as escadas que nos irão conduzir ao Barredo. Faria também a delícia de pintores, se algum resolvesse passar por estes lados: teriam à disposição um magnífico cenário de cinco estrelas.
Mas por aqui não passa ninguém, salvo os moradores das poucas casas que ladeiam as escadas e algum turista mais afoito, com calçado apropriado, que sinta a curiosidade de descobrir o caminho mais curto – e mais antigo – entre o morro de Pena Ventosa e o Rio Douro.
Por aqui se localizava a outra Porta da Cerca Velha – a porta das Mentiras. Assim se chamava este pequeno lugar, alcandorado na vertente sul, como que isolado do resto da povoação a que estava encostado, mas muito cá em cima para fazer parte da zona ribeirinha.
Mentiras, porquê? Promessa não cumprida? Utilização abusiva de algum título ou mercê? Má-língua sobre as virtudes da filha da vizinha, encontrada à noite com um rapaz do Codeçal? Ninguém sabe.
Mas tudo se resolveu com a imagem de Nossa Senhora das Verdades, colocada num nicho da muralha, guardada hoje na capela com o seu nome e que teve o mérito (pode tratar-se até de milagre) de dar uma volta de 180 graus a um topónimo tão pouco prestigiante.
E o homem cansado, mais rugas que idade
Voltou a sorrir e deu o recado:
Se queres a verdade, não podes mentir.
Alguns metros abaixo, um arco pitoresco que nada tem com a Cerca Velha: é o resto do aqueduto que levava a água das Fontaínhas para os Grilos.
À beleza daquele recanto contrapõe-se, logo a seguir, o espectáculo insólito de uma rua caricata, com casas em adiantado estado de ruína, estabelecendo a ligação entre duas escadas: as do Barredo com as do Codeçal, que de Santa Clara descem até ao tabuleiro inferior da Ponte de D. Luís.
Sobrepondo-se a estas, de forma avassaladora e incontornável, marcando impiedosamente o cenário cinzento e pesado que rodeia toda aquela zona, o tabuleiro superior, passando-lhes por cima, materializa, ali, o preço da ligação histórica à outra margem (1). Segundo teto, indesejado, dos prédios a quem protege da chuva e priva do sol, proporciona igualmente aos seus moradores um inquietante ruído de fundo - dantes, contínuo, hoje com o horário do metro - impossível de evitar e penoso de ter por companhia.
Eu gosto de ser quem sou
Com sol, com chuva ou com vento.
Aqui vivo e aqui estou
Não choro nem me lamento
Exteriores à Muralha Fernandina, correm as escadas dos Guindais, mais afastadas e tristemente mais conhecidas, local de derrocadas que a inclinação do terreno tanto favorece. Às desgraças impostas pela Natureza, acrescente-se o aparatoso desastre, em Junho de 1893, ocorrido com o seu elevador, em funcionamento apenas há dois anos, o que desmotivou qualquer nova experiência durante um século.
Agora está lá um novo. Mau era que ao fim de tanto tempo não houvesse tecnologia e vontade para pôr outro a funcionar, com a segurança que se impõe, poupando o desgaste dos seus 293 degraus.
Verdades/Barredo, Codeçal e Guindais: a rede das 3 escadas que durante séculos estabelecia a ligação da cidade alta à zona ribeirinha.
Antes de haver ruas, havia degraus que homens e animais subiam e desciam, numa incessante necessidade de ligação à maior de todas as estradas: o Rio Douro.
Sem o Rio não tinha havido Porto.
(1) - Já referida com a abertura da Av. Da Ponte - Epis. 10 .
E o próximo episódio será o último deste percurso. Olhando para o Rio e ouvindo o que ele nos diz.
(continua)
(Fernando Novais Paiva)
Etiquetas: O Morro e o Rio
14 Comentários:
Olá, Peter, gostei de ler mais esta crónica sobre o Porto..
Andei por esta zona novamente estas férias...
Beijos e abraços
Marta
Marta
Estás a ver: estes eruditos textos do meu amigo e colaborador eventual do blog, dão oportunidade aos portuenses de conhecerem melhor a sua cidade.
Bom fds*
Sempre bom conhecermos algo sobre a história das cidades.
Antes de ler este post vou deixar-te aqui a cópia da resposta ao comentário que me fizeste à 1ª parte da história "Problemas do coração".
Olá, Peter!
Esta história é totalmente ficcionada e não pretende retratar tipos de comportamento quer do Porto quer de qualquer outro local.
Mas, não nego que posso ter sido influenciado pelas minhas próprias vivências portuenses e nortenhas.
Depois de leres a 2ª e última parte gostaria que me explicitasses as diferenças que notas para o que são as tuas experiências muito mais lisboetas.
Seria um interessante exercício!
Ok?
Abraço
Voltarei!
Olá Peter:
Este magnífico conjunto de textos tem-me ajudado a revisitar o velho burgo medievo.
Conheço bem as Escadas dos Guindais porque trabalhei na Rua dos Guindais. Ainda não experimentei o nov elevador.
Beijos
Olá!
Voltei!
Agora pude ler com mais calma este penúltimo episódio desta série sobre a cidade que foi meu berço e de que tanto gosto.
Claro que eu não nasci nem vivi nesta zona histórica que é Património Mundial.
E só conheço alguns dos inúmeros locais que tem sido referidos ao longo da série.
Há 4 ou 5 anos, numa noite de S. João, desci a escadas dos Guindais.
Desci...porque para subir teria certamente de fazer várias paragens para desacelerar o ritmo cardíaco....eh eh.
Venha então o episódio final!
Abraço
prazer grande acompanhar-(te) nessa deambulação pelo Porto. cidade de meus afectos.
abraços
Trvessas/ruas/becos/avenidas que já calcorreei...
As imagens desassossegam a saudade.
Obrigado
Abraço
Paulo
Por viver agora lonje desta terra que é minha... até me comovo.
Um grande abraço de alguém que está triste.
Simão
Gosto de conhecer histórias de Portugal. Amei ver essas imagens... pelo menos assim, faço a viagem dos meus sonhos, sem sair do lugar.
Boa semana, beijos
Há pessoas com um dom natural para contar estórias.
Abraço ao contador.
COMENTÁRIOS
São sempre bem vindos e quero calorosamente agradecê-los, estes e os anteriores, em especial os que são algo mais que protocolares.
O percurso tem mais um episódio,"O RIO". Antes, se o meu amigo Peter aceitar, será publicado um apêndice : " Três filhas em Celanova". As datas é com ele.
Aos "donos" do blog um abraço separado pela vossa generosidade, desta vez patenteada pelo ANT.
O "contador" registou com aprêço.
(Fernando Novais Paiva )
Meu caro FPaiva
O blog está sempre à tua disposição, bem como à dos nossos leitores.
Muito recentemente publiquei dois textos que nos foram enviados. Aliás, na resposta que dei a um comentário, salientei o facto de não se tratar de uma "partilha", que é como se costumam designar os textos seleccionados.
Portanto poderás publicar tudo o que tens em mente. Quanto às datas, vamos acertá-las no próximo almoço.
Abraço
Boa Tarde
Quase 7 anos após o ultimo comentário aqui colocado ocorreu-me uma duvida que não sei se me poderá ajudar . Diiseram-me que no Codeçal há um azulejo com versos para o carteiro numa das frontarias dessa escadaria . Será verdade ? Se existe esse azulejo onde se encontra ?
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