Entre Abril e Junho de 1994 foram assassinados no Ruanda mais de 800 mil “tutsis” perante “a terna indiferença do mundo”, como diria Camus. Os EUA e os Europeus fingiam que não viam e a ONU fechava os olhos e assobiava para o ar.
Ninguém sabia onde ficava o Ruanda, sabiam apenas que não tinha diamantes, nem petróleo.
O pretexto (?) teria sido a queda do avião onde seguia o Presidente, de raça “hutu”. Talvez houvesse um Estado ambicionando ver aumentada a sua influência na zona. Talvez ...
Diariamente e durante esses meses os “tutsis” foram perseguidos, caçados e mortos como ratos, pelos seus vizinhos, amigos, companheiros de infância, ou de trabalho, mas com um ponto em comum: eram de raça “hutu”.
O repórter Jean Hatzfeld escreveu “Dans le nu de la vie”, que julgo ter sido editado pela Caminho e que é a narrativa dos sobreviventes “hutu”. Não o li, nem conhecia o livro.
Posteriormente, foi publicado, pelo mesmo autor: “Tempo de catanas” e que é o depoimento do outro lado, dos assassinos “tutsi”.
Calhou a pegar-lhe numa livraria e a ler duas, ou três linhas, aqui e além e larguei-o horrorizado, perante a inconsciência inominável do cometido. É um livro que escorre sangue.
Mandaram-nos matar e eles mataram. Levantavam-se, tomavam um “mata-bicho” (pequeno almoço) forte, à base de espetadas de carne (a fauna selvagem também foi dizimada) e iam para “o seu trabalho” de procurar e matar “tutsis”. À noite regressavam a casa, para junto da mulher e dos filhos.
Presos, esperam que os libertem e não têm a mínima consciência da barbaridade que cometeram.
Este livro fez-me lembrar outro já antigo sobre o “nazismo que fez a sua época, em sucessivas edições e que foi reeditado recentemente numa colecção de bolso: “Escuta, Zé Ninguém!” de Wilhelm Reich”:
“ ... durante várias décadas, primeiro ingenuamente, mais tarde com espanto, finalmente horrorizado, observou o que o Zé Ninguém da rua “faz a si próprio”; como ele sofre e se revolta, como ele estima os inimigos e assassina os amigos; como ele, onde quer que consiga o Poder como “representante do povo”, abusa desse poder e o transforma em algo de mais cruel que o Poder que ele antes tinha de sofrer às mãos dos sádicos individuos das classes superiores. (...)”
Depois desta longa reflexão e olhando “cá para dentro”, veio-me à lembrança o livro de Viviane Forrester, “L’Horreur Économique”, publicado em França em 1996:
“ É preciso ‘merecer’ viver para se ter direito à vida?” (…) Uma ínfima minoria, já excepcionalmente provida de poderes, de propriedades e de privilégios considerados incontestáveis, assume esse direito por inerência. Quanto ao resto da humanidade, para ‘merecer’ viver, tem de revelar-se ‘útil’ à sociedade, pelo menos ao que a dirige, a domina: a economia confundida como nunca com os negócios, ou seja, a economia de mercado. ‘Útil’ significa quase sempre ‘rendível’, ou proveitosa para o lucro. Numa palavra, ‘empregável’ (‘explorável’ seria de mau gosto!)”
A autora, Viviane Forrester, veio à Gulbenkian em Abril de 1997 (julgo, pois assisti à sua palestra) integrando um Ciclo de Conferencistas de diversos países sobre o “Económico-Social”.
“Descobrimos agora que, para além da exploração dos homens, ainda havia pior e que, perante o facto de já não ser explorável, a multidão de homens considerados supérfluos, cada homem no seio desta multidão pode tremer. Da exploração à exclusão, da exclusão à eliminação …?”
Dez anos se passaram. É possível, é quase certo, que muitos “notáveis” entre nós tenham sido influenciados …