domingo, janeiro 27

LISBOA


Houve um tempo em que Lisboa me doía como uma pele carbonizada. Nunca foi tão bela como nos dias em que tempesteou o meu inferno. Atordoei a consciência e aprendi a não me lembrar do sorriso de quem me ensinou a amá-la deixando-me depois as mãos cheias de tesouros azuis a apodrecer em frente ao trono de um rei que abdicou.

Não sabia o que fazer nesses dias. A beleza da cidade magoava-me mais ainda por me ter apaixonado pelos dois durante os mesmos passos

«o espanto pardo dos ténis de atacadores estarrecidos perante a metamorfose das cores de Lisboa a trepar-me pelos tornozelos, o castelo bêbedo de gárgulas debruçadas para a praça em vénias inebriantes a escarnecer a morte entranhando-se-me nas rótulas, o crepúsculo transparente e insubmisso a conquistar-me em êxtases de pirata vitorioso, as gaivotas gordas de gritos brancos no gozo da lassidão dos meus braços a descobrirem inesperadamente a frustração das asas inacabadas e as sombras densas de lodo e de maresia a substituírem-me com terna crueldade os cabelos enquanto me alcoolizavam de azul a lucidez»*

nas calçadas centenárias.

Um dia, muito depois, quando a dor meio adormecida me permitiu voltar a caminhar pelas ruas antigas, compreendi nas marcas do terramoto que eramos ambas filhas da catástrofe e que, tal como a ela, o azul saberia varrer um dia da minha alma o sangue dos membros dissecados do meu amor morto.

Por vezes sinto a vertigem de, como a minha cidade azul, berço e túmulo do meu amor, sobreviver no equilíbrio precário das estacas assentes no lodo escorregadio. Assusto-me na consciência do peso de mil mundos que carrego em cada gesto. Entro em pânico e morro, uma vez mais, nas imagens alucinadas da tragédia, as flores negras que a memória, cedo ou tarde, sempre me oferece. Depois, levanto-me e continuo. Como Lisboa.

* projecto

(colaboração da Cristiana – foto Peter)

8 Comentários:

Às 27 janeiro, 2008 22:48 , Blogger Manuel Veiga disse...

é um texto belíssimo. muito gratificante. no meio de tantas banalidades que se escrevem sobre Lisboa...

abraços

 
Às 28 janeiro, 2008 11:58 , Blogger quintarantino disse...

Palavras a convidarem que a maior parte de nós se digne conhecer Lisboa.
É uma cidade, tal como nos mostra a fotografia, luminosa, aberta e merecedora de demorados passeios!

 
Às 28 janeiro, 2008 13:29 , Blogger augustoM disse...

Lisboa, Lisboa da minha meninice, do rei fragateiro, da varina e do pregão.
Um abraço. Augusto

 
Às 28 janeiro, 2008 19:47 , Blogger SILÊNCIO CULPADO disse...

Lisboa sempre me apaixonou mas a Lisboa autêntica que se percebe na alma dos seus bairros, de alguma da sua vida nocturna e dos muitos recantos deslumbrantes que tem para nos oferecer. Entreguei-lhe mais de 3 décadas de vida e comovo-me sempre quando a Lisboa regresso depois de longa ausência.
Este texto é simplesmente magnífico, sem favor nenhum.
Um abraço

 
Às 28 janeiro, 2008 20:09 , Blogger Blondewithaphd disse...

I never really liked Lisbon until the day that, already grown up, I missed it terribly and couldn't have it near me. Above all, I missed the light and the blue, immense, calm river. A cliché I know, but true. I now love Lisbon.

 
Às 28 janeiro, 2008 20:11 , Blogger Papoila disse...

Um texto belíssimo e uma não menos belíssima foto. O azul e a luz desta Lisboa!
Beijos

 
Às 28 janeiro, 2008 22:25 , Blogger Lúcia Laborda disse...

Oie Cristiana! Sem a menor dúvida, um belo texto! Mas tudo um dia, faz parte de um passado distante e muitas vezes nem lembramos mais, ou conseguimos rir, do que um dia, nos fez chorar.
Que sua semana seja feliz!
Beijos

 
Às 29 janeiro, 2008 19:19 , Blogger Amita disse...

Espantosamente belo.
Com um encanto imenso o reli.
Felicito a Cristiana pelo prazer que nos deu nesta partilha e espero que volte muitas mais vezes.
A todos um bjinho com muita amizade desta ausente

 

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