quinta-feira, julho 9

Kafka em Portugal

“No passado dia 29 de Junho, o ex-financeiro de Wall Street, Bernard Madoff, foi condenado a uma pena de 150 anos de prisão pelos vários crimes de burla bancária que cometeu, num valor total de c. 65 biliões de dólares. As fraudes de Madoff repousavam numa complexa e dissimulada engrenagem financeira que a crise mundial veio pôr a descoberto, levando à sua prisão, a 11 de Dezembro de 2008. Quer isto dizer que um dos maiores crimes de colarinho branco das últimas décadas na alta finança mundial foi detectado, investigado, julgado e sentenciado em apenas seis meses e meio (!), fazendo jus ao velho dito anglo-saxónico de que só uma justiça rápida faz verdadeira justiça (“swift justice or no justice”).
A celeridade do caso Madoff contrasta vivamente com o panorama da justiça portuguesa. Não sendo advogado, jurista ou magistrado, só posso abordar o tema como cidadão comum – embora, como cidadão comum, não devesse ter que falar dele. Num mundo ideal, a justiça deveria ser uma área da actividade do Estado arredada das manchetes sensacionalistas dos jornais, das trocas de acusações dos políticos e do diz-que-disse da “voz populi”. O que se tem visto nos últimos meses ou anos, contudo – do “apito dourado” à ”operação furacão”, da Casa Pia ao Freeport, do BPN ao BPP, do “caso Esmeralda” ao pequeno Martim – deve deixar-nos a todos preocupados e deveria merecer a mais séria das atenções de todos os agentes envolvidos na justiça.
Quem tem o azar de necessitar dela ou de lhe cair nas malhas deve sentir-se como Joseph K., o pobre personagem do escritor checo Franz Kafka, que, sem saber como, desde quando, porquê, por quem ou até quando, vê a sua pacata existência tumultuada num processo labiríntico que o acaba, literalmente, por aniquilar.
Muita coisa está errada nos tribunais e no processo judicial português, e não necessariamente por causa dos funcionários que neles trabalham.

As instalações são péssimas, os processos são volumosos e infindáveis, a informatização e outros meios periciais são antiquados e rudimentares e as leis, na sua maior parte e nem sei bem se intencionalmente, são complicadíssimas, tão cheias de garantias para o pecador quanto desprovidas delas para o inocente. É por isso que este desespera, e aquele esfrega as mãos, sobretudo se o primeiro for pobre e precisar de uma sentença rápida, e o segundo for rico e lhe convier obstruir o sistema, mediante uma meia-dúzia de incidentes processuais e recursos. Portugal é um país com uma sociedade civil demasiado pequena e com um Estado demasiado omnipresente para que se justifique a justiça que tem para oferecer – burocrática no mar de papelada em que (ainda) repousa, hermética no seu funcionamento, cara, e por isso socialmente discriminatória para muitos, com agentes que falam quando não devem, mas que, pelo corporativismo do sistema, nunca são responsabilizáveis no exercício das suas funções e, no fim disto tudo, lenta, exasperantemente lenta. É por tudo isto que no recente inquérito da SEDES a justiça foi considerada o sector público português que mais directamente envenena a saúde da nossa democracia.

De facto, o azar de Madoff foi não ser português. A ele, ter-lhe-ia dado jeito o labiríntico processo de Kafka: ao cabo de uns aninhos, com fugas de informação, provas baralhadas e investigação contaminada pela política, lá viria a proverbial prescrição para o salvar.”

(José Miguel Sardica, Prof Univ Cat Port, in “Página 1” de 08 Julho 2009)

Desculpe Professor a minha ousadia em transcrever o seu artigo, mas ele corresponde também ao que eu penso como cidadão comum e me preocupa, como deve preocupar os nossos concidadãos, por isso o divulgei. Aliás, o Procurador Geral ainda ontem disse na TV que "a justiça tem de ser completamente independente da política". Portanto e como salienta acima, ela deve executar o seu serviço como "uma área da actividade do Estado arredada das manchetes sensacionalistas dos jornais, das trocas de acusações dos políticos e do diz-que-disse da “voz populi”.

6 Comentários:

Às 09 julho, 2009 11:23 , Blogger antonio ganhão disse...

Pois. Cá também só prendemos um, mas já o vamos pôr em liberdade!

 
Às 09 julho, 2009 11:34 , Blogger Peter disse...

Prender um ou mil, não me interessa, é uma decisão do juiz.

O que eu não aceito, como cidadão votante e que paga integralmente os seus impostos, sem "esquecimentos", ou omissões, os seus deveres para com o Fisco, é que:

"O que se tem visto nos últimos meses ou anos, contudo – do “apito dourado” à ”operação furacão”, da Casa Pia ao Freeport, do BPN ao BPP, do “caso Esmeralda” ao pequeno Martim – deve deixar-nos a todos preocupados e deveria merecer a mais séria das atenções de todos os agentes envolvidos na justiça."

P.S. - A TV já ontem desmentiu a libertação de Oliveira e Costa.

 
Às 09 julho, 2009 12:17 , Blogger Quint disse...

O PGR anda a falar muito.
Mas a este ninguém aponta nada. Alguém me pode dizer em que se distingue de Souto Moura?

 
Às 09 julho, 2009 13:47 , Blogger Peter disse...

FP

Em nada,ambos foram lá postos pelos mesmos.

 
Às 09 julho, 2009 21:24 , Blogger Manuel Veiga disse...

compreendo e associo-me ao teu desbafo...

abraço

 
Às 10 julho, 2009 01:06 , Blogger Peter disse...

"É por tudo isto que no recente inquérito da SEDES a justiça foi considerada o sector público português que mais directamente envenena a saúde da nossa democracia."

Estive lendo o teu texto e deixei lá um comentário. Sabes como aprecio a tua poesia num estilo "intervencionista", tão diferente do de alguns comentaristas que por lá vejo.

É a lei da "blogoesfera": "se tu vens cá, eu vou lá".

 

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