domingo, junho 22

o horror económico

Entre Abril e Junho de 1994 foram assassinados no Ruanda mais de 800 mil “tutsis” perante “a terna indiferença do mundo”, como diria Camus. Os EUA e os Europeus fingiam que não viam e a ONU fechava os olhos e assobiava para o ar.
Ninguém sabia onde ficava o Ruanda, sabiam apenas que não tinha diamantes, nem petróleo.
O pretexto (?) teria sido a queda do avião onde seguia o Presidente, de raça “hutu”. Talvez houvesse um Estado ambicionando ver aumentada a sua influência na zona. Talvez ...
Diariamente e durante esses meses os “tutsis” foram perseguidos, caçados e mortos como ratos, pelos seus vizinhos, amigos, companheiros de infância, ou de trabalho, mas com um ponto em comum: eram de raça “hutu”.

O repórter Jean Hatzfeld escreveu “Dans le nu de la vie”, que julgo ter sido editado pela Caminho e que é a narrativa dos sobreviventes “hutu”. Não o li, nem conhecia o livro.
Posteriormente, foi publicado, pelo mesmo autor: “Tempo de catanas” e que é o depoimento do outro lado, dos assassinos “tutsi”.
Calhou a pegar-lhe numa livraria e a ler duas, ou três linhas, aqui e além e larguei-o horrorizado, perante a inconsciência inominável do cometido. É um livro que escorre sangue.
Mandaram-nos matar e eles mataram. Levantavam-se, tomavam um “mata-bicho” (pequeno almoço) forte, à base de espetadas de carne (a fauna selvagem também foi dizimada) e iam para “o seu trabalho” de procurar e matar “tutsis”. À noite regressavam a casa, para junto da mulher e dos filhos.
Presos, esperam que os libertem e não têm a mínima consciência da barbaridade que cometeram.

Este livro fez-me lembrar outro já antigo, que fez a sua época, em sucessivas edições e que julgo ter sido reeditado recentemente numa colecção de bolso: “Escuta, Zé Ninguém!” de Wilhelm Reich, sobre o “nazismo”:

“ ... durante várias décadas, primeiro ingenuamente, mais tarde com espanto, finalmente horrorizado, observou o que o Zé Ninguém da rua “faz a si próprio”; como ele sofre e se revolta, como ele estima os inimigos e assassina os amigos; como ele, onde quer que consiga o Poder como “representante do povo”, abusa desse poder e o transforma em algo de mais cruel que o Poder que ele antes tinha de sofrer às mãos dos sádicos individuos das classes superiores. (...)”

Depois desta longa reflexão e olhando “cá para dentro”, veio-me à lembrança o livro de Viviane Forrester, “L’Horreur Économique”, publicado em França em 1996:

“ É preciso ‘merecer’ viver para se ter direito à vida?” (…) Uma ínfima minoria, já excepcionalmente provida de poderes, de propriedades e de privilégios considerados incontestáveis, assume esse direito por inerência. Quanto ao resto da humanidade, para ‘merecer’ viver, tem de revelar-se ‘útil’ à sociedade, pelo menos ao que a dirige, a domina: a economia confundida como nunca com os negócios, ou seja, a economia de mercado. ‘Útil’ significa quase sempre ‘rendível’, ou proveitosa para o lucro. Numa palavra, ‘empregável’ (‘explorável’ seria de mau gosto!)”

A autora, Viviane Forrester, veio à Gulbenkian em Abril de 1997 (julgo, pois assisti à sua palestra) integrando um Ciclo de Conferencistas de diversos países sobre o “Económico-Social”.

“Descobrimos agora que, para além da exploração dos homens, ainda havia pior e que, perante o facto de já não ser explorável, a multidão de homens considerados supérfluos, cada homem no seio desta multidão pode tremer. Da exploração à exclusão, da exclusão à eliminação …?”

Dez anos se passaram. É possível, é quase certo, que muitos “notáveis” entre nós tenham sido influenciados …

8 Comentários:

Às 22 junho, 2008 22:30 , Blogger Manuel Veiga disse...

excelente post...
sei do que falas.conheço os livros. e estive na Conferencia ... rss

Horrivel essa ideia de "seres humanos descartáveis"...

abraços

 
Às 22 junho, 2008 22:45 , Blogger Ant disse...

Olá Peter.
Óptimo texto.

spero para a outra semana, depois do concerto, voltar às escritas.

Abraço

 
Às 23 junho, 2008 15:05 , Blogger Peter disse...

heretico

Continuo com problemas de saúde. Obrigado pela visita.

 
Às 23 junho, 2008 15:07 , Blogger Peter disse...

ANT

Idem. Não posso ainda deslocar-me.

 
Às 24 junho, 2008 16:46 , Blogger Brisa disse...

Este post fez-me muita impressão. Diz aquilo que por vezes penso mas tento afastar da cabeça porque é mau demais! E não devia sentir-me assim, se há algum tempo ouvi na rádio alguém (economista, creio) a falar sobre a subida do preço dos alimentos, justificada não pela escassez mas pela especulação - afinal, o que interessa é manter os lucros!

 
Às 24 junho, 2008 17:04 , Blogger Blondewithaphd disse...

Se me é permitido, sugiro o filme "Hotel Rwanda". Impossível ficar indiferente.

 
Às 24 junho, 2008 17:47 , Blogger Peter disse...

Brisa

É a triste realidade dos n/dias.

Perante o que se passa e que leio nos jornais, sobre a vida faustosa de um ex-dirigente desportivo, vivendo em Londres mas a contas com a Justiça portuguesa e perante o n/quotidiano miserabilista que foca a sua atenção na polícia e deixa impunes, ou com penas leves os prevaricadores, pergunto a mim mesmo se valerá a pena estar a perder o meu tempo com blogs e a resposta é NÂO.

Por isso não vale a pena continuar uma luta inglória.

 
Às 24 junho, 2008 17:51 , Blogger Peter disse...

Blonde, vi o filme e é impressionante.
Repara que Mugabe se prepara para continuar no poder numa terra que não tem diamantes, nem petróleo e por isso não interessa a ninguém ...

 

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