sábado, maio 7

Seres decentes



“Quando cumpria o seu segundo mandato, Ramalho Eanes viu ser-lhe apresentada pelo Governo uma lei especialmente congeminada contra si. O texto impedia que o vencimento do Chefe do Estado fosse «acumulado com quaisquer pensões de reforma ou de sobrevivência» públicas que viesse a receber. Sem hesitar, o visado promulgou-o, impedindo-se de auferir a aposentação de militar para a qual descontara durante toda a carreira. O desconforto de tamanha injustiça levou-o, mais tarde, a entregar o caso aos tribunais que, há pouco, se pronunciaram a seu favor.
Como consequência, foram-lhe disponibilizadas as importâncias não pagas durante catorze anos, com retroactivos, num total de um milhão e trezentos mil euros.
Sem de novo hesitar, o beneficiado decidiu, porém, prescindir do benefício, que o não era pois tratava-se do cumprimento de direitos escamoteados e não aceitou o dinheiro.
Num país dobrado à pedincha, ao suborno, à corrupção, ao embuste, à traficância, à ganância, Ramalho Eanes ergueu-se e, altivo, desferiu uma esplendorosa bofetada de luva branca no videirismo, no arranjismo que o imergem, nos imergem por todos os lados.
As pessoas de bem, logo o olharam empolgadas: o seu gesto era-lhes uma luz de conforto, de ânimo em altura de extrema pungência cívica, de dolorosíssimo abandono social.
Antes dele só Natália Correia havia tido comportamento afim, quando se negou a subscrever um pedido de pensão por mérito intelectual que a secretaria da Cultura (sob a responsabilidade de Pedro Santana Lopes) acordara, ante a difícil situação económica da escritora, atribuir-lhe. «Não, não peço. Se o Estado português entender que a mereço», justificar-se-ia, «agradeço-a e aceito-a. Mas pedi-la, não. Nunca!»

O silêncio caído sobre o gesto de Eanes (deveria pelo seu simbolismo, ter aberto telejornais e primeiras páginas de periódicos) explica-se pela nossa recalcada má consciência que não suporta, de tão hipócrita, o espelho de semelhantes comportamentos.
“A política tem de ser feita respeitando uma moral, a moral da responsabilidade e, se possível, a moral da convicção”, dirá. Torna-se indispensável “preservar alguns dos valores de outrora, das utopias de outrora”.
Quem o conhece não se surpreende com a sua decisão, pois as questões da honra, da integridade, foram-lhe sempre inamovíveis. Por elas, solitário e inteiro, se empenha, se joga, se acrescenta - acrescentando os outros.
“Senti a marginalização e tentei viver”, confidenciará, “fora dela. Reagi como tímido, liderando”. O acto do antigo Presidente («cujo carácter e probidade sobrelevam a calamidade moral que por aí se tornou comum», como escreveu numa das suas notáveis crónicas Baptista-Bastos) ganha repercussões salvíficas da nossa corrompida, pervertida ética.

Com a sua atitude, Eanes (que recusara já o bastão de Marechal) preservou um nível de dignidade decisivo para continuarmos a respeitar-nos, a acreditar-nos - condição imprescindível ao futuro dos que persistem em ser decentes.”

(Fernando Dacosta)

4 Comentários:

Às 10 maio, 2011 13:56 , Blogger Joaquim Alves disse...

Não sabia desta atitude de Ramalho Eanes!

Talvez ainda haja esperança neste país!

Lá está: «à mulher de César não basta ser, tem também de parecer.»

Um abraço Peter ao fim de muito tempo.

 
Às 16 maio, 2011 01:29 , Blogger Peter disse...

Bluegift

Não sei se estaria em melhores mãos pois não confio nos dirigentes de algumas ONG.
É como simpatizar com o PS e não poder com o sr Sócrates.

Abraço e no dia 5 lá irei votar em branco.

 
Às 16 maio, 2011 01:43 , Blogger Peter disse...

lusitano

"Esperança" já a perdi há muito. Por isso, entre andar por aqui a comentar "mentiras" ou distrair-me na FarmVille, prefiro esta hipótese.

A "miragem" de em 2011 recebermos os subsídios de férias e de Natal vai entregar o Govermo a quem levou o meu país ao estado em que se encontra.

 
Às 03 novembro, 2011 15:09 , Blogger ANTÓNIO MARQUES ALMEIDA disse...

UMA AGULHA NO PALHEIRO,MAS UMA AGULHA DE QUALIDADE.
“SERVIR A REPÚBLICA E NÃO SERVIR-SE DELA” é o ideal republicano tantas vezes esquecido pelos políticos da nossa praça.
António Marques

 

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