Sábado de Aleluia
O Sábado de Aleluia é o sábado anterior ao domingo de Páscoa. É o dia em que se acende o Círio Pascal, uma grande vela. O Círio simboliza a luz de Cristo, que ilumina o mundo. Na vela, estão gravadas as letras gregas Alfa e Omega, que querem dizer "Deus é o princípio e o fim de tudo".
Quando eu era miúdo e frequentava a Escola Primária Oficial, o único estabelecimento de ensino que havia na terra, adorava ir "correr as aleluias".
A miudagem, por volta do meio dia reunia-se no adro da igreja matriz. Muitos de nós descalços, pois usar botas era um luxo não acessível a todos. Eu era dos felizardos, pois tinha as minhas botas de couro, cardadas, feitas no único sapateiro que havia na terra. Lembro-me de lá ir tirar medidas, o pé assente em cima duma folha de papel pardo e o mestre sapateiro tirando o lápis de trás da orelha e desenhando no papel o contorno do mesmo. Depois, com a fita métrica, tirava-me a medida do peito do pé. Era esperar que ficassem prontas, o que levava sempre bastante tempo, pois o vinho era uma tentação e só quando o dinheiro faltava ele acelerava o trabalho.
É certo que na oficina havia sempre meia dúzia de aprendizes, sentados em mochos e que executavam o trabalho. Depois de aprendizes passavam a sapateiros. Não havia o problema do trabalho infantil, ou melhor, havia, era um facto aceite por todos. Os aprendizes não tinham remuneração, pois estavam a aprender a arte. Ingressavam no mister por volta dos 9 ou 10 anos, depois de terem completado o ensino escolar obrigatório: a 3ª classe do Ensino Primário. Como passavam o dia sentados a trabalhar, os outros rapazes gozavam com eles dizendo que tinham "cu de sapateiro", designação depreciativa e que aplicavam a outros que tivessem igualmente o traseiro mais desenvolvido.
Esperava-se que o sino da igreja tocasse as aleluias ao meio dia e então a malta ali reunida, todos de talego ao pescoço e com um guizo, ou chocalho, também pendurados no mesmo, partia em correria louca percorrendo as ruas da vila. As pessoas atiravam-lhe rebuçados e amêndoas, sobretudo estas. A maior parte eram "de gesso", como lhes chamávamos, pois eram mais ordinárias, com menos açúcar e com um amendoim em vez de uma amêndoa. Era uma briga, a rapaziada atropelando-se, empurrando-se, caindo em cima uns dos outros na disputa das guloseimas. Saía-se com uns joelhos esfolados e, no pior dos casos, com alguma cabeça partida.
Mas era bom, a malta gostava e eu tenho saudades desse tempo, em que não havia "game-boys", mas eu tinha a minha fisga, feita por mim para matar pardais e a bola com que jogávamos na rua era de trapos envolvidos numa meia. E tinha uma coisa importantíssima, inestimável e a que só agora dou o devido valor:
Tinha a vida inteira à minha frente.
6 Comentários:
Peter :
Sensibilizaste-me com este texto o que as crianças se divertiam com tão pouco. Agora não passa de um sábado qualquer para a maioria sem o menor significado.
A Pascoa passou a ser outro feriado comercial onfe se oferece amendoas eovos de chocolate quanto maiores e mais caros melhores.
Sem ser saudosista como era divertido nesse tempo
Abraço
e uma boa Páscoa
É verdade "alex", contentávamo-nos com tão pouco e eramos felizes.
Abraço e um bom Domingo de Páscoa.
Meu caro, um texto notável em que se notam memórias e experiências vividas em que a tónica era a alegria de viver!
Os tempos mudaram muito entretanto e, nalguns casos, penso que para pior. Perdeu-se muito do espírito de comunidade e de comunhão solidária entre as pessoas, independentemente dos valores pelos quais cada um vive.
Quanto aos mais novos, nem vale a pena falar.
Os medos dos pais e o excesso de materialismo, mais um crescimento caótica das urbes que roubou espaço aquele paredes meias duma casa com um campo ou o pinhal, fazem dos petizes uns verdadeiros "rostos pálidos" ...
Ferreira-Pinto
Por vezes dá-me para a nostalgia.
compreendo perfeitamnte o texto. e os sentimentos que o ditam
abraços
heretico
Hoje fiquei horrorizado quando uma miúda entrevistada na TV disse que passava 7 a 8h por dia na internet!
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