sábado, setembro 6

Os assobios e os bloqueios

“No dia 10de Junho, Sócrates recebeu uma vaia. Banal, quase todos os primeiros-ministros acabam vaiados. O que é notável, no caso deste primeiro-ministro, é a velocidade com que passou de bestial a… digamos, péssimo.

Coisa diferente é saber se há verdadeiros motivos para assobiar o primeiro-ministro. Cada um terá os seus – e todos juntos são muitos - , mas convenhamos que se formos totalmente honestos, a culpa da crise que se avizinha não é dele, a culpa da desigualdade que temos não é dele e a culpa do nosso atraso também não é dele. Ainda que lhe associemos uma pequena parte da culpa nisto tudo (e a sua arrogância não foi boa conselheira), manda a verdade dizer que Portugal cresceu economicamente, que a pobreza é menor (ainda que a desigualdade possa ser maior) e que, no geral, não estamos à beira da bancarrota, como já estivemos, por vezes, nos últimos 30 anos, além de várias vezes na nossa História.

As gerações actuais não sabem o que é uma verdadeira crise. Hoje, já têm à volta de 80 anos aqueles que passaram conscientemente pela II Guerra Mundial. Os que sabiam – mesmo em Portugal – o que eram senhas de racionamento, o que era pobreza extrema. Essa geração, que são os pais e os avós das gerações agora activas, construíram como puderam, aqui e na Europa destruída pela guerra (onde foi decisivo o apoio dos EUA), uma sociedade de abundância, quase sem pobreza, aberta aos imigrantes. Passaram sacrifícios em nome de todos nós, eram de famílias que morreram na guerra, em campos de concentração, que passaram fome, que andaram fugidos, que viveram em crise, mas que no meio da adversidade tinham ainda assim esperança no futuro e acreditavam que os filhos viveriam melhor do que os pais.

Hoje, quase ninguém aceita quaisquer sacrifícios, qualquer diminuição do bem-estar, ainda que seja em nome dos seus descendentes. Hoje, a receita é querer tudo, e querê-lo já! A ideia de uma recompensa futura, que é fundadora da nossa civilização judaico-cristã, esfumou-se nas brumas.

Ao mesmo tempo, o Estado social que os nossos antepassados construíram esboroa-se hoje na falta de natalidade, no prolongamento dos anos de vida, nas técnicas de saúde cada vez mais caras. Mas nada fazemos senão exigir mais e mais do Estado. E, se acaso alguém tenta reformar este estado de coisas, acaba assobiado ou caluniado num 10 de Junho qualquer.

É uma situação difícil, uma situação de crise. Mas pior do que a crise económica e do que a crise de representação da sociedade, é a crise de valores em que mergulhámos.

Sem lideranças firmes e convictas que contrariem este imediatismo sem sentido, o destino dos líderes políticos é serem assobiados e maltratados. E o destino dos Governos é ceder àqueles que mais gritam, que mais prejudicam o país ou que mais violência ameaçam.

Infelizmente, não é por esta recusa de liderança, por este bloqueio no apontar de caminhos que os líderes políticos são assobiados. Quase sempre o são pelos piores motivos: por não destruírem mais ainda o legado que recebemos.”

(Editorial do jornal EXPRESSO, data desconhecida.)

11 Comentários:

Às 07 setembro, 2008 12:07 , Blogger Papoila disse...

Peter:
Regressada de férias venho visitar os amigos.
Gostei da crónica, mas passo para deixar um abraço.
Beijo

 
Às 07 setembro, 2008 12:27 , Blogger JOY disse...

Boas amigo Peter,

Tenho de reconhecer a razão desta crónica, de facto penso ser assim que as coisas se passam.

Um abraço
Joy

 
Às 07 setembro, 2008 12:47 , Blogger vbm disse...

«Sem lideranças firmes e convictas
que contrariem este imediatismo...»

_________________________________

Compreendo a ideia,
mas discordo

porque o diagnóstico descritivo
passa ao lado da causa mais decisiva

para a resolução dos problemas:
mais conhecimento.

A boa governação apoia e
escuta os que sabem
e distingue-os
dos vígaros.

 
Às 07 setembro, 2008 22:01 , Blogger Peter disse...

Vasco

Concordo com o que dizes no que respeita à necessidade de "mais conhecimento". Mas a afirmação anterior:

"É uma situação difícil, uma situação de crise. Mas pior do que a crise económica e do que a crise de representação da sociedade, é a crise de valores em que mergulhámos."

está mais de acordo com o momento actual.

P.S. - Deixei-te uma resposta ao teu último comentário ao artigo "Cosmologia quântica" no que respeita às galáxias se poderem afastar umas em relação às outras a valores superiores à velocidade da luz sem violação da "Teoria da relatividade geral".

 
Às 07 setembro, 2008 22:16 , Blogger Peter disse...

Carol

Tinha este recorte de jornal, não sei se é de Junho deste ano, mas foca toda uma série de pontos que retratam bem a sociedade portuguesa.
Mais do que o "pró-Sócrates", ou "anti-Sócrates" é ela que está em causa.

 
Às 08 setembro, 2008 12:12 , Blogger Blondewithaphd disse...

É um texto difícil. Reconheço-me em parte, discordo noutro tanto. Mas a sociedade em que vivemos é em si difícil e o momento presente é um emaranhado de decisões mal tomadas no passado, políticas incertezas no agora, a voragem do desenvolvimento e aceleração. Complicado...

 
Às 08 setembro, 2008 22:07 , Blogger António disse...

Olá!
Queres dar um saltinho ao meu blog
http://eusoulouco2.blogs.sapo.pt?
Obrigado!

Abraço

 
Às 08 setembro, 2008 23:09 , Blogger Manuel Veiga disse...

completamente de acordo. interessante buscar as razões

(não me canso em tentar...)

abraços

 
Às 08 setembro, 2008 23:49 , Blogger Peter disse...

heretico

"pior do que a crise económica e do que a crise de representação da sociedade, é a crise de valores em que mergulhámos"

As razões?
Que cada um as procure dentro de si próprio.

 
Às 09 setembro, 2008 00:09 , Blogger Peter disse...

blondewithaphd

"Ao mesmo tempo, o Estado social que os nossos antepassados construíram esboroa-se hoje na falta de natalidade, no prolongamento dos anos de vida, nas técnicas de saúde cada vez mais caras. Mas nada fazemos senão exigir mais e mais do Estado."

É um facto.

"E, se acaso alguém tenta reformar este estado de coisas, acaba assobiado ou caluniado num 10 de Junho qualquer."

Muito possivelmente porque as reformas serão insuficientes ou/e as menos indicadas. Prossegue o desaparecimento da classe média, agrava-se o fosso que separa pobres dos ricos e estes têm sempre meios de escapar ao fisco e de beneficiar duma Justiça conturbada. O seu dinheiro permite-lhes pagar aos melhores fiscalistas e advogados.

 
Às 10 setembro, 2008 18:54 , Blogger Meg disse...

Peter,
Li e nada tenho a acrescentar às tuas reflexões.
"Retive-me, porém, nestas tuas palavras:
"As razões?
Que cada um as procure dentro de si próprio."
Um abraço

 

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