sábado, abril 7

Sábado de Aleluia


«O Sábado de Aleluia é o sábado anterior ao domingo de Páscoa. É o dia em que se acende o Círio Pascal, uma grande vela. O Círio simboliza a luz de Cristo, que ilumina o mundo. Na vela, estão gravadas as letras gregas Alfa e Omega, que querem dizer "Deus é o princípio e o fim de tudo". »

Quando eu era miúdo e frequentava a Escola Primária Oficial, o único estabelecimento de ensino que havia na terra, adorava ir "correr as aleluias". A miudagem, por volta do meio dia reunia-se no adro da igreja matriz. Muitos de nós descalços, pois usar botas era um luxo não acessível a todos. Eu era dos felizardos, pois tinha as minhas botas de couro, cardadas, feitas no único sapateiro que havia na terra. Lembro-me de lá ir tirar medidas, o pé assente em cima duma folha de papel pardo e o mestre sapateiro tirando o lápis de trás da orelha e desenhando no papel o contorno do mesmo. Depois, com a fita métrica, tirava-me a medida do peito do pé.
Era esperar que ficassem prontas, o que levava sempre bastante tempo, pois o vinho era uma tentação e só quando o dinheiro faltava ele acelerava o trabalho.
É certo que na oficina havia sempre meia dúzia de aprendizes, sentados em mochos e que executavam o trabalho. Depois de aprendizes passavam a sapateiros. Não havia o problema do trabalho infantil, ou melhor, havia, era um facto aceite por todos. Os aprendizes não tinham remuneração, pois estavam a aprender a arte. Ingressavam no mister por volta dos 9 ou 10 anos, depois de terem completado o ensino escolar obrigatório: a 3ª classe do Ensino Primário. Como passavam o dia sentados a trabalhar, os outros rapazes gozavam com eles dizendo que tinham "cu de sapateiro", designação depreciativa e que aplicavam a outros que tivessem igualmente o traseiro mais desenvolvido.

Esperava-se que o sino da igreja tocasse as aleluias ao meio dia e então a malta ali reunida, todos de talego ao pescoço e com um guizo, ou chocalho, também pendurados no mesmo, partia em correria louca percorrendo as ruas da vila.
As pessoas atiravam-lhe rebuçados e amêndoas, sobretudo estas. A maior parte eram "de gesso", como lhes chamávamos, pois eram mais ordinárias, com menos açúcar e com um amendoim em vez de uma amêndoa.
Era uma briga, a rapaziada atropelando-se, empurrando-se, caindo em cima uns dos outros na disputa das guloseimas.
Saía-se com uns joelhos esfolados e, no pior dos casos, com alguma cabeça partida.

Mas era bom, a malta gostava e eu tenho saudades desse tempo, em que não havia game-boys, mas eu tinha a minha fisga, feita por mim para matar pardais e a bola com que jogávamos na rua era de trapos envolvidos numa meia.
E tinha uma coisa importantíssima, inestimável e a que só agora dou o devido valor:

Tinha a vida inteira à minha frente.

10 Comentários:

Às 07 abril, 2007 12:28 , Blogger Menina Marota disse...

Sou muito saudosa.

Eu sei, é um dos meus pontos fracos e agora, a ler-te, deixei escapar uma lágrima, por aqueles que partiram e que eu adoro, mas que já não estão em corpo comigo. As coisas mudaram, porque já não podem ser iguais, há tantos lugares vagos à mesa...

Um abraço carinhoso e uma Santa Páscoa

 
Às 07 abril, 2007 12:33 , Blogger Menina Marota disse...

"Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo."

(Fernando Pessoa)

Nem a propósito detive-me no poema que tens postado aqui ao lado e que gosto tanto de ler.

Não te importas que o leve emprestado? Apetece-me postá-lo naquele meu blogue mais "sossegado"... eheh ;)

Beijo e bom fim de semana;)

 
Às 07 abril, 2007 13:01 , Blogger Menina Marota disse...

Já lá está... mas como os comentários só aceitam registo do Blogger, deixo aqui o endereço...

http://www.mgrande.com/weblog/index.php/eternamentemenina

Bj ;)

 
Às 07 abril, 2007 13:03 , Blogger Peter disse...

"menina_marota", é bom recordar velhos tempos, quanto mais não seja para mostrarmos às exigentes criancinhas dos nossos dias, como eramos felizes com o pouco que tínhamos.

Também quiz demonstrar que, embora não sabendo escrever um verso, não tenho problemas em escrever prosa, sem necessidade da ir buscar a outros blogues.

O seu a seu dono: os poemas de FP estão a ser colocados pela "bluegift", mas aqui do blog podes levar o que quiseres, pois não temos "copyrights".

Uma Boa e Feliz Páscoa para ti e todos os que te são queridos.

 
Às 07 abril, 2007 15:35 , Blogger Grilinha disse...

Que bom recordar momentos únicos.
Obviamente que os tempos eram de dificuldades mas cheios de cores e sabores que desapareceram.
Uma santa Páscoa.

 
Às 07 abril, 2007 19:20 , Blogger Marta Vinhais disse...

Pois é - ser feliz com aquilo que se tinha....
Boa máxima, bom exemplo....
Gostei muito do teu texto - honra partilhar..
Boa Páscoa - também já estou a chorar, passei a semana a chorar e prometi que não o faria mais...
Beijos e abraços
Marta

 
Às 08 abril, 2007 02:52 , Blogger Maria Carvalho disse...

Este comentário foi removido pelo autor.

 
Às 09 abril, 2007 18:33 , Blogger Papoila disse...

Peter:
Vim ler este Sábado de Aleluía e para além de ler deliciada as tuas memórias fiquei a saber do círio pascal com o alfa e ómega gravados o princípio e o fim de tudo...
Beijos

 
Às 11 abril, 2007 22:09 , Blogger Pepe Luigi disse...

Belíssima e apaixonante história real, cujo enredo nos leva a congeminar a nossa imaginação.

Um abraço
Pepe

 
Às 12 abril, 2007 19:03 , Blogger António disse...

Bom texto, Peter!
Uma nota especial para a grande escola profissional que era, seguramente, a pequena oficina do sapateiro.

Abraço

 

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