terça-feira, novembro 28

Cidade azul


“Houve um tempo em que Lisboa me doía como uma pele carbonizada. Nunca foi tão bela como nos dias em que tempesteou o meu inferno. Atordoei a consciência e aprendi a não me lembrar do sorriso de quem me ensinou a amá-la deixando-me depois as mãos cheias de tesouros azuis a apodrecer em frente ao trono de um rei que abdicou.

Não sabia o que fazer nesses dias. A beleza da cidade magoava-me mais ainda por me ter apaixonado pelos dois durante os mesmos passos.

o espanto pardo dos ténis de atacadores estarrecidos perante a metamorfose das cores de Lisboa a trepar-me pelos tornozelos, o castelo bêbedo de gárgulas debruçadas para a praça em vénias inebriantes a escarnecer a morte entranhando-se-me nas rótulas, o crepúsculo transparente e insubmisso a conquistar-me em êxtases de pirata vitorioso, as gaivotas gordas de gritos brancos no gozo da lassidão dos meus braços a descobrirem inesperadamente a frustração das asas inacabadas e as sombras densas de lodo e de maresia a substituírem-me com terna crueldade os cabelos enquanto me alcoolizavam de azul a lucidez

nas calçadas centenárias.

Um dia, muito depois, quando a dor meio adormecida me permitiu voltar a caminhar pelas ruas antigas, compreendi nas marcas do terramoto que éramos ambas filhas da catástrofe e que, tal como a ela, o azul saberia varrer um dia da minha alma o sangue dos membros dissecados do meu amor morto.

Por vezes sinto a vertigem de, como a minha cidade azul, berço e túmulo do meu amor, sobreviver no equilíbrio precário das estacas assentes no lodo escorregadio. Assusto-me na consciência do peso de mil mundos que carrego em cada gesto. Entro em pânico e morro, uma vez mais, nas imagens alucinadas da tragédia, as flores negras que a memória, cedo ou tarde, sempre me oferece. Depois, levanto-me e continuo. Como Lisboa.”

Este texto guardei-o dos tempos em que andava pelos Fóruns do SAPO. Não foi escrito por mim, cada interveniente utilizava uma série de “nicks” de modo que nunca se tinha a certeza de quem era quem. Ou talvez eu saiba, mas isso pouco importa. Não estou a plagiar, nem a roubar direitos editoriais. O texto é capaz de ter alguns 20 anos, mais do que a idade de muitos/as que por aqui andam.
Apeteceu-me publicá-lo agora. Talvez tenha motivos para o fazer…

“Depois, levanto-me e continuo. Como Lisboa.”

12 Comentários:

Às 28 novembro, 2006 12:16 , Blogger Ant disse...

Não são precisas justificações para publicar um bom texto. E claro que faz todo o sentido, ou sentidos.
Abraço Peter, assim de fugida, ainda...

 
Às 28 novembro, 2006 12:33 , Blogger Maria Carvalho disse...

Sempre em movimento. Isso é o principal. Beijos.

 
Às 28 novembro, 2006 16:09 , Blogger Menina Marota disse...

Ah Peter!

Fizeste-me agora recordar tempos maravilhosos que passei nos Fóruns.

Tanto do Sapo, como do Terravista.

Muitos textos e poemas por lá ficaram perdidos, alguns nem registo tenho deles, mas que importa, é a minha Alma que ali está.

"...Depois, levanto-me e continuo. Como Lisboa."

Excelente texto!

Deixo um abraço repleto de lembranças ;)

 
Às 28 novembro, 2006 17:34 , Blogger Peter disse...

"bluegift", tens razão. Tenho a mania dos exageros. Foi há 6 anos. Tenha andado a fazer "arqueologia forense". O máximo explendor foi, talvez o período de 2000/02.
Em 2003 começaram os problemas e eu pirei-me e criei um blog: "Poeira de estrelas" que viria a apagar intempestivamente. Coisas ...

Havia um "RuiVaz", não sei se nome, se nick. Nunca vi, nem voltei a ver uma pessoa a escrever assim, nem eu mesmo consigo descrever.

 
Às 28 novembro, 2006 17:40 , Blogger Peter disse...

"Ant" estive apreciando no teu plog a pintura do "palácio".

Não fujas muito, pois estou à tua espera.

 
Às 28 novembro, 2006 17:58 , Blogger Peter disse...

"menina_marota", volto a repetir que não sou o autor (neste caso autora) do texto.Também nunca consegui saber o seu verdadeiro nome, pois cada vez que escrevia (ou quase) utilizava um nick diferente.

A "temporada de ouro" teria sido 2000 a Maio de 2002. Aí começaram os problemas e eu criei o meu blog. Lembro-me de ter havido grande contestação aos blogs.

Como já disse à "blue", achava imensa piada à maneira "sui generis" do Rui Vaz escrever.

Usei quase sempre o nick Magoo e comecei a frequentar o fórum de literatura (já não me recordo o nome) e esporadicadicamente o "Amor & Companhia", mas com a criação do "Astronomia", fixei-me lá.

 
Às 28 novembro, 2006 18:07 , Blogger Peter disse...

Paula Raposo, tenho andado a limpar o "lixo" do PC. Ontem, a partir das 02h00, fiquei sem internet e passei a noite a levantar-me, com receio que tivesse apagado algo de fundamental e nada.
Hoje de manhã vi, aliviado, que tinha. Mas tive um dia muito ocupado, só agora me sentei aqui e vou ver se logo, depois de jantar dou uma volta pelos blogs amigos.

Obrigado pela visita.

 
Às 28 novembro, 2006 19:10 , Blogger Papoila disse...

Lindíssimo texto que retiraste do baú Peter!
"Depois, levanto-me e continuo. Como Lisboa."
Recomeçar... Renascer...
Beijo

 
Às 28 novembro, 2006 21:46 , Blogger Peter disse...

"papoila", penso que um blog deve ser algo mais que uma divulgação das criações literárias e artísticas do seu autor.

Aqui também tem lugar aquilo que de belo o blog tem para mostrar, contribuindo assim para que o simples leitor sinta que não perdeu tempo com a sua visita e que esta valeu a pena. E se essa visita se traduz num comentário, é uma conversa que se inicia entre dois desconhecidos, um contacto humano sempre agradável.

Beijo

 
Às 28 novembro, 2006 22:49 , Blogger Peter disse...

A foto é minha. Ao menos dei alguma contribuição para o "post" ...

 
Às 29 novembro, 2006 14:29 , Anonymous Anónimo disse...

e fizeste muito bem ter publicado. muito bem "lida" a cidade de Lisboa!

(grato pelas sugestões.talvez um dia desembarquemos na OTA e façamos uma viagem de TGV!)

abraços

 
Às 29 novembro, 2006 14:56 , Blogger Peter disse...

"herético", já comecei a juntar dinheiro, mas o mais certo é morrer antes que tenha o suficiente...

Abraço

 

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