segunda-feira, janeiro 16

A instrução dos amantes

Por vezes, quando leio um livro, transcrevo curtos textos, uma pequena frase e até uma simples palavra, ou limito-me a sublinhá-los, ou a escrever alguma anotação, ou comentário.
Porque me agradaram, me dizem algo, e eu guardo-as como guardo as imagens da NGM, que vou buscar à NET.
Surgirá o dia em que as publico, ou até poderá nunca surgir.
Acham que é “plágio”, que não sou original? Isso é convosco: ler, ou não ler, faz parte dos “Direitos inalienáveis do Leitor”, como escreve Daniel Pennac no seu livro: “Como um romance”.
Transcrevo abaixo este texto de Inês Pedrosa. Porquê?
Porque me apetece e chegou a ocasião de o fazer:

“Estava farta de ser humana, de se cansar a provar quem era e de se cansar ainda mais a procurar alguém que a amasse assim, por nada. Escondia-se nos números, ria-se dos poemas perdidos nos diários de menina. Sabia agora que a indeterminação atinge a raiz de todos os cálculos e já não esperava nada daquele congresso de informática. Podia começar a envelhecer comodamente. Do amor guardava os destroços costumeiros: hábitos ou hálitos decompostos pelas marés, lumes que se gastam como velas de circunstância. And suddenly.Depois, só um poema de Sophia aberto sobre a mesa de cabeceira dela.
"Terror de te amar/ num sítio tão frágil como o Mundo.
Mal de te amar neste lugar de imperfeição/ Onde tudo nos mente e nos separa."Ela diz que quer esquecer, mas traz cada fragmento dele colado ao corpo como uma bóia de salvação. A memória mente ao corpo. Impartilhável, imortal, o cinema do segredo. Um filme encravado, ao arrepio dos dias, debaixo da pele.

(…)
Nunca mais houve ninguém. Aquele amor apagou o mundo. Quando, muitas lágrimas depois, ressuscitámos, estávamos sozinhos. O luto do grande amor torna-nos apenas numa pessoa. E ser uma pessoa é muito pouco para quem já foi nada. Para quem já deu tudo. Jurámos que nunca mais. Assim não. Nem pensar - "Não te posso dar nada", dizem os amantes uns aos outros depois de terem dado tudo. O nada é aquilo que nos lembra aos outros, quando morremos de uma das múltiplas mortes que podemos ter para os outros. Agora contamos a história tintim por tintim. Mas sobra sempre um tumtum.” .

(Inês Pedrosa, “A instrução dos amantes”, 1992)

14 Comentários:

Às 16 janeiro, 2006 17:20 , Blogger Fragmentos Betty Martins disse...

Peter

Escrever "sobre os amantes/amores")

Pois o mesmo amor que te coroa - crucifica-te

É aquele que te faz crescer - mas também te poda

(Kahlil Gibran)

Assim como se eleva
para acariciar
os teus ramos mais tenros
que estremecem ao sol...
também desce às raizes
e abala a tua firmeza na terra.

O amor é a única liberdade do mundo, pois eleva de tal modo o espírito que as leis da Humanidade e os fenómenos da Natureza
não alteram o seu curso.

I. Pedrosa uma grande mulher das letras.

Beijinhos

 
Às 16 janeiro, 2006 18:09 , Anonymous Anónimo disse...

Falar do texto, não o faço, por ser demaisado brilhante. Gosto da Inês. É fabulosa.
A ti, dou-te os parabéns pela escolha. Estas (as escolhas) também nos definem.

 
Às 16 janeiro, 2006 19:18 , Blogger Peter disse...

elsaaaaa, precisava que o dia tivesse 48h. Mas consigo racionalizar o meu tempo, começando por dormir 4h por noite. O tempo é demasiado precioso para o perder a dormir.

Parabéns por o teu outro blog ter sido distinguido pelo SAPO. Se calhar será de substituir o que está nos n/links por esse, já que, por norma, só colocamos um blog/pessoa. O que achas?

 
Às 16 janeiro, 2006 19:29 , Blogger Peter disse...

Betty

Rubaiyat 26

“O vasto mundo: um grão de poeira no espaço.
Toda a ciência dos homens: palavras.
Os povos, os animais e flores dos sete climas: sombras.
O resultado da tua perpétua meditação: nada.”

(Omar Khayyam, “Rubaiyat” 26)

Será outro faceta do meu EU, dos meus interesses, da minha interrogação permanente.

Obrigado pelo texto de Inês Pedrosa, que guardei.

Quanto ao texto que publiquei (abusivamente), ainda há pouco uma pessoa disse-me ter gostado, pois embora conhecendo a autora, não conhecia o texto publicado.

Bj*

 
Às 16 janeiro, 2006 19:32 , Blogger Peter disse...

zezinho, as escolhas podem ser indiscretas: não só nos definem, como podem retratar o nosso estado de espírito.
Tem sido profícua a associação do trio!

 
Às 16 janeiro, 2006 19:55 , Anonymous Anónimo disse...

Comentar a Inês, essa belíssima senhora da nossa literatura? Comentar e excerto? Tenho o livro! Contraponho com Neruda...
Amantes...
Dois amantes felizes fazem um só pão,
uma só gota de lua sobre a erva,
deixam andando duas sombras que se juntam,
deixam um único sol vazio numa cama.
De todas as verdades escolheram o dia:
não se ataram com fios, mas com um aroma,
e não despedaçaram a paz nem as palavras.
A alegria é uma torre transparente.
O ar, o vinho, vão com os dois amantes,
a noite dá-lhes as suas pétalas felizes,
têm direito aos cravos que apareçam.
Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.
Pablo Neruda
Beijo

 
Às 16 janeiro, 2006 20:01 , Blogger Zica Cabral disse...

fantastico este texto da Inês Pedrosa. Sempre gostei imenso de a ler. Quanto aos apontamentos e notas de frases e palavras, nunca são plagios se se usarem em diferentes textos . Afinal ninguem inventa nada só oedena de maneira diferente as palavras que já existem.´
E como na música. As notas estão lá, os sons e acordes tb. Mas é preciso talento para os pôr na ordem devida para que soem melodica e coerentemente (ou não ). Mozart não inventou nada, apenas usou o que havia para fazer uma obra magistral.
Beijinhos
Zica

 
Às 16 janeiro, 2006 20:27 , Blogger Su disse...

gostei de ler
jocas maradas

 
Às 16 janeiro, 2006 23:10 , Blogger Peter disse...

maria papoila, comentar é contribuir e, por isso, obrigado pelo texto de Neruda que enviaste e do qual fiz c&p para futura publicação aqui, ou no Peter's.
Tb tenho Neruda e não conhecia este poema e ainda hoje me falaram do texto que publiquei e de que gostaram, pois embora lendo Inês Pedrosa, não o conheciam.

Bj*

 
Às 16 janeiro, 2006 23:20 , Blogger Peter disse...

Zica, tb penso assim, desde que se indique a origem podemos intercalá-los para reforçar, compor ou completar um texto.
Neste caso concreto, achei que o texto era o adequado, visando um determinado fim.
O citar um autor tb contribui para a sua divulgação.

Judiciosa a tua comparação com a música. Sabes que já estive na casa onde viveu Mozart, em Salzburgo? Qq dia coloco aí uma foto dela.

Bj*

 
Às 16 janeiro, 2006 23:22 , Blogger Peter disse...

"su", obrigado pela tua contribuição sempre presente.

Bj*

 
Às 16 janeiro, 2006 23:29 , Blogger margusta disse...

Peter,
...apeteceu-te e muito bem, pois desconheço o livro assim como Inês Pedrosa :( mas gostei muito do texto que nos apresentas-te.
Beijinhos.

 
Às 17 janeiro, 2006 00:39 , Blogger Peter disse...

margusta, talvez o texto se coadune com o meu estado de espírito. Talvez ...
Tens aí acima um texto brilhante escrito pelo Zé. Vale a pena lê-lo, estou certo que vais gostar.

Bj*

 
Às 17 janeiro, 2006 21:56 , Blogger Amita disse...

Quase "como um romance" se lê Pennac (quase=programa da faculdade) e, como excertos da vida, se lêem as magníficas escolhas seguintes que publicas. Adorei e felicito-te. Um bjo e uma flor

 

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