sexta-feira, outubro 14

Fúrias!

Sinto-me a ser dilacerado por aquele vento frio que se faz sentir lá fora, abanando janelas, rasgando a noite, abrindo-me de lado a lado sem compaixão alguma, devassando sentimentos, arrastando-me nas suas fúrias incontroladas. E eu, qual árvore frágil, oscilo, oscilo até quase me estatelar no chão terroso ou em alternativa ser levado pelos ares.
“Ele, ela, ele, ela, ele, ela” parecem murmurar as fúrias ventosas que arrasam e arrastam tudo à sua passagem.
“ Não sei, não sei “ ouço gritar este maldito vento furibundo, sedento de caos, que vai semeando pânicos, deixando tudo despido, não de roupagens, mas rompendo os frágeis invólucros que cobrem almas.
Tento apaziguá-lo com mezinhas, velas, rezas e eu sei lá mais o quê. Em vão. Está louco o Deus que o mandou.
“Ele, ela, ele, ela, ele, ela” ruge o maldito a todo o instante. Sufoco. Não consigo ouvir aquele ruído sibilino, mau, que me devassa e me mostra tal qual eu sou. “Não quero ver-me” grito em vão a esse Deus louco que despejou sobre estas terras ditas do Demo, as suas raivas e frustrações.
Este tergiversar quase anacrónico lembra de quando em vez, que talvez já tenha estado mais longe da loucura. Tenho caminhado pela vida de uma forma leve, despreocupada, ou ao invés, tenho passado por ela intensamente, comprometido?! – Não o sei. Talvez ambas as fórmulas estejam correctas. Mas isso não me impede de questionar: estou ou não louco?
“Ele, ela, ele, ela, ele, ela”. Que matraquear constante desta dualidade que o maldito vento teima em repetir, como se me quisesse lembrar que não passo de uma mísera folha morta, ao sabor dos seus caprichos. E nem isso sou. Talvez nada.
Assalta-me uma fúria maior que a do vento. Ouvi os ruídos de fundo, a alegria incontida num qualquer bar onde tudo se confunde em copos, corpos e um desmembramento total do ser humano enquanto tal. E eu só, ouvindo o rugido animal desta besta que é o vento enviado pelo tal Deus louco. Ah! Mas fiz-lhe frente. Agora é ele quem me teme a fúria!
Já muito ao longe não é mais que um timidozinho que se afasta de rabo entre pernas, numa fuga vergonhosa, diante da minha hercúlea raiva.
Agora vai sussurrando: “Ele, ela, ele, ela, ele, ela…” e afasta-se cada vez mais num murmúrio quase lamentoso.
O Deus louco sucumbiu, morreu na sua própria embriaguez de fúrias incontidas.
Volto tranquilo ao meu sofá preferido.
Retomo a leitura de “O Delfim” de José Cardoso Pires, ao som de “Night ride home” de Joni Mitchell.
Navego agora em águas tranquilas trazidas por Iemanjá. Um leve torpor de prazer vai-se apossando a pouco e pouco de mim, dando-me um pouco de Paz que quase nunca tenho, por causa desta busca frenética de mim mesmo.
Sei apenas que te ouvi. Basta-me por ora.

5 Comentários:

Às 14 outubro, 2005 13:07 , Anonymous Anónimo disse...

Embora seja delícia reler-te, para quando algo novo?

 
Às 14 outubro, 2005 14:55 , Blogger Peter disse...

Vou deixar aí esse "anonymous", porque estou farto deles e não tenho já pachorra, nem estou para perder tempo e trabalho a apagá-los.
Li o teu texto enviezado, pois estou na 2ª fase da vida do homem: acabei de comer (e beber) uma rica almoçarada. Qualquer dia escrevo um post sobre as 3 fases.
Só te queria dizer que esse livro do JCPires ("O delfim"), já o li por três vezes, em fases diferentes da minha vida e sempre encontrei coisas novas.
Tenho a impressão que está na altura de o ler pela 4ª vez ...

 
Às 14 outubro, 2005 15:01 , Blogger Amita disse...

Kredo, Zé! Que palavras te sopra esse vento louco em que te embebes pouco a pouco como uma marinada? Talvez, quem sabe, não seja um vento tão duro percorrendo seguro a Yemanjá de paz serena que traças. E porquê temer o vento se neste Outono ameno em doce brisa se faz? Para terminar estas letras sem rima, te louvo escritor-poeta pela escrita sempre bela que nos deixas e nos apraz. Te envio um beijo uma flor para que a Paz o Amor reine sempre contigo. Voltarei para saudar os outros companheiros e saudosos amigos a quem deixo também um beijo e um doce sorriso.

 
Às 14 outubro, 2005 17:38 , Blogger folhasdemim disse...

Excelente Zé! Senti o vento furioso. Ao contrário do teu, o meu vento hoje soprou baixinho :) Beijinhos, Betty

 
Às 14 outubro, 2005 22:41 , Anonymous Anónimo disse...

Mais um dos teus textos que estamos a reler, sempre cheios de beleza, mas como diz o a. duarte lázaro, para quando algo novo?
Beijo.
ana

 

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