A volubilidade da luz
Rebuscando nos meus arquivos:
”Perguntas-me se vi o céu, se reparei no céu, que está lindo esta manhã. Que pode ter o céu? penso. E a pergunta ecoa nos segundos seguintes. Poderia ser um poema se o permitisse. Mas não me apetece, calo o eco.
Não reparei no céu, reparei na luz intensa da manhã entre as árvores e senti vontade de fotografar, mas o tempo não é meu e a maioria das manhãs, com ou sem sol, não me pertence. Penso nisso enquanto desço a rua do trabalho. E penso nisso enquanto espero pelo elevador.
São iguais os gestos que começam o dia de trabalho.
Fora, ficou hoje o sol. Enquanto espero o elevador sinto-me triste. A tristeza tem crescido os últimos dias, sempre, enquanto espero o elevador.
Ainda que apenas me limitasse a registar, com a máquina fotográfica, os movimentos embalados das pessoas nas ruas ou a luz intensa entre as árvores, seria outra vida, mais verdadeira, porventura, do que a luta viciada em que as coisas em que acredito são usadas contra as coisas em que acreditei. Seria uma contemplação inútil mas uma contemplação assumida e uma inutilidade assumida. Enquanto espero o elevador penso nisso e quando abro a porta desisto. O tempo não me pertence, anuo, aceito, carrego no botão do meu andar - todos os dias.
As coisas em que acreditei. O pretérito perfeito foi intencional e ditado pela coerência.
Quando a coerência é escassa torna-se mais valiosa. Os dias passam-se iguais e a desistência torna-se insuportável sempre que abro a porta do elevador, como se esse gesto a agigantasse. Mas suporto-a. Pior ontem que hoje mas suporto-a.
Esta manhã, senti vagamente os teus bons dias e pouco depois ouvi mais claramente o bater da porta - incomodou-me ter acordado mais tarde. Antes do elevador e antes de reparar na luz intensa entre as árvores, sentada à beira da cama a calçar-me, pensei em como gostaria que me dissesses bom dia outra vez. Perguntaste-me pelo céu, o que é igual.
Talvez pudesse fotografar casamentos e baptizados. Ou talvez os meros registos fotográficos das pessoas nas ruas sejam um dia algo mais que inútil contemplação. O tempo muda as fotografias, oferece-lhes um tempo berço, uma pausa de invisibilidade variável, o contraste daí resultante. E, como cada vez há menos árvores, mesmo as fotografias que só mostram a luz intensa entre as árvores, poderão um dia, talvez, fazer nascer em alguém a raiva de plantar árvores ou a raiva pelas árvores que foram abatidas, sendo isso uma perda, por menos poético que se seja e por menos sensibilidade à luz e à serenidade que se experimente.
Tu não, mas eu sim. Gosto das pessoas nas fotografias, gosto da silhueta humana, frágil, e verosímil nessa fragilidade, como que, por fim, no contexto certo do espaço que é demais e afasta, do sol que ofusca e escurece. E numa perspectiva mais técnica e mais escolar, gosto em geral da escala que a silhueta humana oferece a uma imagem.
Pela silhueta humana se mede tudo - o tamanho das casas, a largueza das ruas, a intensidade da luz pela forma como cai nos ombros, o vazio do mundo, a proporção, tão pequena, de gente.
A silhueta negra de uma pessoa. Quanto mais pequena, mais negra e mais se destaca a cabeça. E mais simples é: um ponto redondo e um traço ligeiramente curvado. À volta, o resto, o espaço enorme, mesmo nas cidades, o espaço que apaga os gestos e emudece a vontade. Ao longe, vê, é simples. Mais longe, nem sinal de nós.
Que poderia ter o céu que mudasse tudo isto, que nos permitisse regressar, ao menos nas árvores, que poderia ter o céu além da luz que te assalta e abre os olhos, precários, numa gratidão irracional pelo amanhecer indiferente do caos?”
16 Comentários:
Um belo texto, Peter. Passo para te e vos desejar uma boa noite.
Bom dia Peter
Apesar da chuva por aqui.
Na minha ronda pelos blogs, ou é impressão minha ou há uma onda de ligeira tristeza...será do tempo?
Mas a mim fez-me muito bem o belo texto que li, apesar de triste, cheio de nostalgia.
Um abraço
"lady", o texto não é meu, nem sei de quem é. Antes do aparecimento dos blogs, ou pelo menos da sua "explosão", andava pelos Fóruns do SAPO e fui coleccionando textos, maravilhosos como este, sem a preocupação de idendificar o autor/a, uma vez que nunca me passou pela cabeça vir a reproduzi-los.
Sem duvida um texto soberbo.
Gosto do que se consegue ler mas entrelinhas.
Jinhos ternos
É verdade... Zezinho e não é que estoiu mesmo hihihih
Jinhos again
"the woman" etc.
O "zezinho" é na "porta ao lado".
Olá, Peter.
O "azul" do texto é perfeito como é a mensagem que deixaste no meu blog.
Conheço o quadro; vi nos livros e aqui também.
Obrigada pelas visitas e desculpa se nem sempre passo por aqui, mas tenho tido pouco tempo.
Um xi
Marta
P.S.: Que é feito do Zezinho? Será que viajou?
Marta, o Zezinho está no texto acima.
"letrasaoacaso", sei. Falo disso no meu post "Teoria do CAOS", de 11 do corrente.
"noitestrelada", tem sido um "mau dia", mas o vídeo que tens no blog, vale bem uma visita.
Pois é "isabella", a chuva estragou-me o dia, mas sem ela como cresciam os nabos?
lindas palavras as que acabei de ler e reler
gostei muito, muito mesmo
"...Mas não me apetece, calo o eco...A tristeza tem crescido os últimos dias, sempre, enquanto espero o elevador.....As coisas em que acreditei. O pretérito perfeito foi intencional e ditado pela coerência....Gosto das pessoas nas fotografias.."
amei ler-te
jocas maradas
"su", não é "ler-te", mas sim "ler", pois o texto não é meu. Aliás, eu digo logo no início
"Rebuscando nos meus arquivos:"
"Lady", citando: "Tens de começar a dizer que é de autor desconhecido", costumo pôr, mas desta vez não me lembrei. Ou talvez saiba mt bem quem é o autor/a, mas não o quiz pôr, por motivos que não vêm para o caso.
Continuando a citar-te: "Até que eu acho que tu és capaz de escrever assim e muito melhor ainda, pelo que tenho lido e aprecidado da tua inteligência."
Obrigado, talvez eu seja preguiçoso, ou ande desinspirado, ou simplesmente mais interessado na vida real que em blogs.
opsss eu li essa frase mas pensei que teus arquivos...eram os teus ..teus...escritos por ti
de qq modo amei na mesma ler e o teres partilhdo aqui
jocas maradas
"lady", se fui desagradável, lamento e peço desculpa, pois não foi minha intenção. Seria o cúmulo da indelicadeza ser desagradável para com as visitas.
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