quinta-feira, fevereiro 16

A volubilidade da luz

Rebuscando nos meus arquivos:

”Perguntas-me se vi o céu, se reparei no céu, que está lindo esta manhã. Que pode ter o céu? penso. E a pergunta ecoa nos segundos seguintes. Poderia ser um poema se o permitisse. Mas não me apetece, calo o eco.

Não reparei no céu, reparei na luz intensa da manhã entre as árvores e senti vontade de fotografar, mas o tempo não é meu e a maioria das manhãs, com ou sem sol, não me pertence. Penso nisso enquanto desço a rua do trabalho. E penso nisso enquanto espero pelo elevador.

São iguais os gestos que começam o dia de trabalho.
Fora, ficou hoje o sol. Enquanto espero o elevador sinto-me triste. A tristeza tem crescido os últimos dias, sempre, enquanto espero o elevador.

Ainda que apenas me limitasse a registar, com a máquina fotográfica, os movimentos embalados das pessoas nas ruas ou a luz intensa entre as árvores, seria outra vida, mais verdadeira, porventura, do que a luta viciada em que as coisas em que acredito são usadas contra as coisas em que acreditei. Seria uma contemplação inútil mas uma contemplação assumida e uma inutilidade assumida. Enquanto espero o elevador penso nisso e quando abro a porta desisto. O tempo não me pertence, anuo, aceito, carrego no botão do meu andar - todos os dias.

As coisas em que acreditei. O pretérito perfeito foi intencional e ditado pela coerência.
Quando a coerência é escassa torna-se mais valiosa. Os dias passam-se iguais e a desistência torna-se insuportável sempre que abro a porta do elevador, como se esse gesto a agigantasse. Mas suporto-a. Pior ontem que hoje mas suporto-a.

Esta manhã, senti vagamente os teus bons dias e pouco depois ouvi mais claramente o bater da porta - incomodou-me ter acordado mais tarde. Antes do elevador e antes de reparar na luz intensa entre as árvores, sentada à beira da cama a calçar-me, pensei em como gostaria que me dissesses bom dia outra vez. Perguntaste-me pelo céu, o que é igual.

Talvez pudesse fotografar casamentos e baptizados. Ou talvez os meros registos fotográficos das pessoas nas ruas sejam um dia algo mais que inútil contemplação. O tempo muda as fotografias, oferece-lhes um tempo berço, uma pausa de invisibilidade variável, o contraste daí resultante. E, como cada vez há menos árvores, mesmo as fotografias que só mostram a luz intensa entre as árvores, poderão um dia, talvez, fazer nascer em alguém a raiva de plantar árvores ou a raiva pelas árvores que foram abatidas, sendo isso uma perda, por menos poético que se seja e por menos sensibilidade à luz e à serenidade que se experimente.

Tu não, mas eu sim. Gosto das pessoas nas fotografias, gosto da silhueta humana, frágil, e verosímil nessa fragilidade, como que, por fim, no contexto certo do espaço que é demais e afasta, do sol que ofusca e escurece. E numa perspectiva mais técnica e mais escolar, gosto em geral da escala que a silhueta humana oferece a uma imagem.
Pela silhueta humana se mede tudo - o tamanho das casas, a largueza das ruas, a intensidade da luz pela forma como cai nos ombros, o vazio do mundo, a proporção, tão pequena, de gente.
A silhueta negra de uma pessoa. Quanto mais pequena, mais negra e mais se destaca a cabeça. E mais simples é: um ponto redondo e um traço ligeiramente curvado. À volta, o resto, o espaço enorme, mesmo nas cidades, o espaço que apaga os gestos e emudece a vontade. Ao longe, vê, é simples. Mais longe, nem sinal de nós.

Que poderia ter o céu que mudasse tudo isto, que nos permitisse regressar, ao menos nas árvores, que poderia ter o céu além da luz que te assalta e abre os olhos, precários, numa gratidão irracional pelo amanhecer indiferente do caos?”

16 Comentários:

Às 16 fevereiro, 2006 02:18 , Blogger Amita disse...

Um belo texto, Peter. Passo para te e vos desejar uma boa noite.

 
Às 16 fevereiro, 2006 10:09 , Blogger Hata_ mãe - até que a minha morte nos separe Hugo ! disse...

Bom dia Peter
Apesar da chuva por aqui.
Na minha ronda pelos blogs, ou é impressão minha ou há uma onda de ligeira tristeza...será do tempo?
Mas a mim fez-me muito bem o belo texto que li, apesar de triste, cheio de nostalgia.
Um abraço

 
Às 16 fevereiro, 2006 13:02 , Blogger Peter disse...

"lady", o texto não é meu, nem sei de quem é. Antes do aparecimento dos blogs, ou pelo menos da sua "explosão", andava pelos Fóruns do SAPO e fui coleccionando textos, maravilhosos como este, sem a preocupação de idendificar o autor/a, uma vez que nunca me passou pela cabeça vir a reproduzi-los.

 
Às 16 fevereiro, 2006 13:33 , Anonymous Anónimo disse...

Sem duvida um texto soberbo.
Gosto do que se consegue ler mas entrelinhas.
Jinhos ternos

 
Às 16 fevereiro, 2006 13:34 , Anonymous Anónimo disse...

É verdade... Zezinho e não é que estoiu mesmo hihihih
Jinhos again

 
Às 16 fevereiro, 2006 14:27 , Blogger Peter disse...

"the woman" etc.
O "zezinho" é na "porta ao lado".

 
Às 16 fevereiro, 2006 15:31 , Blogger Marta Vinhais disse...

Olá, Peter.
O "azul" do texto é perfeito como é a mensagem que deixaste no meu blog.
Conheço o quadro; vi nos livros e aqui também.
Obrigada pelas visitas e desculpa se nem sempre passo por aqui, mas tenho tido pouco tempo.
Um xi
Marta
P.S.: Que é feito do Zezinho? Será que viajou?

 
Às 16 fevereiro, 2006 16:40 , Blogger Peter disse...

Marta, o Zezinho está no texto acima.

 
Às 16 fevereiro, 2006 16:42 , Blogger Peter disse...

"letrasaoacaso", sei. Falo disso no meu post "Teoria do CAOS", de 11 do corrente.

 
Às 16 fevereiro, 2006 18:16 , Blogger Peter disse...

"noitestrelada", tem sido um "mau dia", mas o vídeo que tens no blog, vale bem uma visita.

 
Às 16 fevereiro, 2006 18:24 , Blogger Peter disse...

Pois é "isabella", a chuva estragou-me o dia, mas sem ela como cresciam os nabos?

 
Às 16 fevereiro, 2006 20:26 , Blogger Su disse...

lindas palavras as que acabei de ler e reler
gostei muito, muito mesmo

"...Mas não me apetece, calo o eco...A tristeza tem crescido os últimos dias, sempre, enquanto espero o elevador.....As coisas em que acreditei. O pretérito perfeito foi intencional e ditado pela coerência....Gosto das pessoas nas fotografias.."

amei ler-te
jocas maradas

 
Às 16 fevereiro, 2006 21:05 , Blogger Peter disse...

"su", não é "ler-te", mas sim "ler", pois o texto não é meu. Aliás, eu digo logo no início

"Rebuscando nos meus arquivos:"

 
Às 17 fevereiro, 2006 05:57 , Blogger Peter disse...

"Lady", citando: "Tens de começar a dizer que é de autor desconhecido", costumo pôr, mas desta vez não me lembrei. Ou talvez saiba mt bem quem é o autor/a, mas não o quiz pôr, por motivos que não vêm para o caso.

Continuando a citar-te: "Até que eu acho que tu és capaz de escrever assim e muito melhor ainda, pelo que tenho lido e aprecidado da tua inteligência."

Obrigado, talvez eu seja preguiçoso, ou ande desinspirado, ou simplesmente mais interessado na vida real que em blogs.

 
Às 17 fevereiro, 2006 08:43 , Blogger Su disse...

opsss eu li essa frase mas pensei que teus arquivos...eram os teus ..teus...escritos por ti
de qq modo amei na mesma ler e o teres partilhdo aqui
jocas maradas

 
Às 17 fevereiro, 2006 16:20 , Blogger Peter disse...

"lady", se fui desagradável, lamento e peço desculpa, pois não foi minha intenção. Seria o cúmulo da indelicadeza ser desagradável para com as visitas.

 

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