sábado, julho 2

A instrução dos amantes

Estava farta de ser humana, de se cansar a provar quem era e de se cansar ainda mais a procurar alguém que a amasse assim, por nada. Escondia-se nos números, ria-se dos poemas perdidos nos diários de menina. Sabia agora que a indeterminação atinge a raiz de todos os cálculos e já não esperava nada daquele congresso de informática. Podia começar a envelhecer comodamente. Do amor guardava os destroços costumeiros: hábitos ou hálitos decompostos pelas marés, lumes que se gastam como velas de circunstância. And suddenly.
Depois, só um poema de Sophia aberto sobre a mesa de cabeceira dela.

"Terror de te amar
num sítio tão frágil como o Mundo.
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos mente e nos separa."

Ela diz que quer esquecer, mas traz cada fragmento dele colado ao corpo como uma bóia de salvação. A memória mente ao corpo. Impartilhável, imortal, o cinema do segredo. Um filme encravado, ao arrepio dos dias, debaixo da pele.
Em horas de maior insuportabilidade ela acusa a dispersão do mundo. Porque é perigoso que o ódio ganhe a intensidade da paixão que o gera. Pode morrer-se da humilhação de odiar sem descanso; Ana Carolina corria a sete pés para a glória da fatalidade sempre que sentia o coração à beira do gelo.
- Foram as fronteiras do mundo que mo levaram. - repetia, só para si.
À geografia cabe hoje o papel tirano que dantes cabia às famílias. Pelo menos consola pensar que há um tirano qualquer, uma força maior a moldar a maldade humana.
Consola pensar que, no fundo, lá bem no fundo, o louro nórdico é um desvalido dos ventos, violentamente cego de amor. Um anjo caído por engano numa imagem humana.

Nunca mais houve ninguém. Aquele amor apagou o mundo. Quando, muitas lágrimas depois, ressuscitámos, estávamos sozinhos. O luto do grande amor torna-nos apenas numa pessoa. E ser uma pessoa é muito pouco para quem já foi nada. Para quem já deu tudo. Jurámos que nunca mais. Assim não. Nem pensar - "Não te posso dar nada", dizem os amantes uns aos outros depois de terem dado tudo. O nada é aquilo que nos lembra aos outros, quando morremos de uma das múltiplas mortes que podemos ter para os outros. Agora contamos a história tintim por tintim. Mas sobra sempre um tumtum. E se ele voltasse? Sim. Se? Chiu.

Deixemos as meninas brincar com este baralho de papéis precários.

(Inês Pedrosa, “A instrução dos amantes” 1992)

1 Comentários:

Às 03 julho, 2005 00:41 , Blogger Peter disse...

Como viu, o texto que me agradou bastante, foi retirado duma obra. No último artigo que publicou no seu blog tem um belíssimo texto auto-biográfico (?).

 

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