sexta-feira, julho 31

A ignorância


“Até que ponto um certo amor pelo espaço não revelará, afinal, uma incompreensão muito grande desse mesmo espaço? Porque a Terra não está fora do Universo, nem o Sol, nem a Via Láctea. Assim, se eu pensar em mim enquanto ser humano, poderei sentir-me preso à Terra embora deseje ansiosamente sair, voar, conhecer outros espaços; mas se pensar em mim enquanto matéria pensante, e isso é sobretudo aquilo que sou, compreendo que não preciso fazer viagem nenhuma, que a viagem mais longínqua é a que faz a estrela que a Terra persegue incessantemente.

Eu vivo numa imensa nave e já viajo no espaço e no tempo; na verdade, se penso um pouco, compreendo que nunca fiz outra coisa senão desejar conhecer outros mundos. Mas Universo com vida é aqui. Pode haver mais, haverá certamente mais – “...seria um enorme desperdício de espaço se não houvesse...” -, mas a Terra deve dar-me, enquanto não me for possível viajar no Cosmos, tudo aquilo que me é necessário, todas as fontes de deslumbramento e de encanto possíveis – se a Terra não me der tudo isso, estou certo que nenhum outro mundo me dará. A Terra é o dia único que contém todos os dias, a noite única que contém todas as estrelas, o pequeno mundo onde encontro todos os grandes mundos, o meu hoje que contém todos os ontens e todos os amanhãs, o instante onde encontro o infinito e a eternidade. (…) o terror de se ser corpo, de se existir sob a forma de um corpo” (Milan Kundera, “A ignorância”)


Este sentimento leva-me a uma série de reflexões:
- O que me liga a Andrómeda para eu gostar tanto dela? Que sentir profundo é este que me relaciona com essa Nebulosa? O que nos une? Serão os elementos dos átomos que compõem o meu corpo, prioritariamente dali?
- E este corpo que se perpetua através dos meus átomos, integrando outros organismos, num “eterno retorno”? Será possível dissociá-lo do “espírito”, do meu “sentir”, que é “luz” e “vibração”? E seria esta componente espiritual, imortal, que se perpetuaria através de todos os Universos possíveis? A “teoria das cordas” que pretendeu substituir os elementos pontuais e ínfimos da matéria por pequenos segmentos que vibram e que seria esse vibrar que os caracterizava e lhes conferia as suas propriedades, que nos diz? “Vibração”? Sim, talvez, pois todo o electrão é simultaneamente “corpúsculo” e “onda”, “onda=vibração”?
- E quando me lembro do “filme-mito”, “2001-Odisseia no espaço”, o que vou encontrar senão “luz” e “música” (vibração)? Será que haverá seres que são só luz?
No livro de Kundera os personagens têm vida própria e é assim que actuam. Movimentam-se livremente como indivíduos que são e as relações que se estabelecem são procuradas, no interesse de quem as procura, mas sem que com isso se entenda como sendo uma relação de dependência, antes de complementaridade.

Que me leva a “postar” hoje?

Não estou sujeito a horário, nem a nenhuma obrigação de o fazer ou deixar de fazer. Estava para aqui a olhar o ecrã em branco... aliás talvez não valha a pena.

7 Comentários:

Às 31 julho, 2009 18:29 , Blogger Nilson Barcelli disse...

Achei as tuas reflexões deliciosas.
Levantam uma série de questões para as quais não existem respostas e que talvez nunca as tenhamos... Mas estas matérias são fascinantes.

Quando viajamos de comboio, podemos viajar dentro do comboio... seria interessante que tivéssemos a capacidade de o fazer na nossa galáxia (para não ir mais longe...).

Foi a pensar mais ou menos como tu, quando dizes, neste post "E este corpo que se perpetua através dos meus átomos, integrando outros organismos, num “eterno retorno”?...", que escrevi um poema, cuja ideia poucos terão captado.
Deixo-o aqui (desculpa o abuso):


"Do tempo, em nós encavalitado,
incapazes de o impedir
rumo ao infinito irrevogável,
somos pauzinhos inúteis
na engrenagem do pêndulo sideral.

Nesse trajecto, que acompanhamos
com a mesma influência das pedras,
reeditamo-nos em mortos futuros
para alongar a viagem que sabemos finita.

Mas, incongruentes, derretemos
demasiado gelo no uísque
do nosso consumismo
e abreviamos enfatuados a excursão,
cada vez mais quente e contaminada.

Depois disso, o tempo caminhará
sem a nossa companhia,
a menos que tenhamos arte e engenho
de nos mudarmos para outro relógio
a tempo inteiro habitável."


Caro amigo, bom fim de semana.
Abraço.

 
Às 31 julho, 2009 19:14 , Blogger Peter disse...

Nilson

A ideia-base do teu poema é, quanto a mim:

"reeditamo-nos em mortos futuros
para alongar a viagem que sabemos finita"

Corresponde à minha pergunta:

E este corpo que se perpetua através dos meus átomos, integrando outros organismos, num "eterno retorno"?

Abraço amigo

 
Às 31 julho, 2009 19:25 , Blogger vbm disse...

:))

É! O Cosmos é um fascínio.

Acredito-o eterno;
a nossa dispersão nele
acompanhá-lo-á.

Já quanto à possibilidade autonómica
da res cogitans não parece crível...

Pois, se me anestesiam os sentidos
eu fico como morto, nada sinto;
o que fará sem nada meu animado!?

Não obstante, por muito que seja «a existência que sustenta a consciência», - e não vice-versa -, o certo é que o pensamento do mundo busca percepcioná-lo no seu lógico (in)determinismo e nós estamos quase a tocar no "ponto" em que não só «o universo é formulado como tal fórmula será o próprio universo»! como sonhou Leibniz, mente brilhante multifacetada! :))


Quanto a Andrómeda, a tua atracção
- como a minha - explica-se
por essa ser uma

galáxia-gémea
da nossa Via Láctea

assim como pelo sentido
venéreo de ambos os nomes femininos!

:)

 
Às 31 julho, 2009 20:44 , Blogger Meg disse...

Peter,

Não, isto não tem nada a ver com o abade... tão terreno!
Isto é muito mais profundo e até inquietante, aqui flutuo... e como preciso!

Bom fim de semana

um abraço

 
Às 31 julho, 2009 21:41 , Blogger Peter disse...

vbm

Meu caro amigo, interessante a tua afinidade com Andrómena.Tenho a impressão que foi a n/comum amiga Blue (onde parará ela?) que nos "contagiou".

"Já quanto à possibilidade autonómica da res cogitans não parece crível..." Claro que não.
Quando eu morrer, os meus átomos poderão passar para ervas, que seriam comidas por vacas, das quais um bom bife passaria para o corpo de outro ser humano e assim se continuaria o meu ciclo de imortalidade.

"A existência sustenta a consciência".

 
Às 31 julho, 2009 21:45 , Blogger Peter disse...

Meg

Tenho a impressão que algo te preocupa.
Estou sempre à inteira disposição dos amigos, em:

conversas.xaxa@gmail.com

"Alma até Almeida!"

 
Às 06 agosto, 2009 15:48 , Blogger Nilson Barcelli disse...

Caro Peter

A ideia-base do meu poema é mesmo essa parte e que, de facto, corresponde à tua pergunta.

Abraço.

 

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