Da amizade
Quando andava na FLL procurando tirar a Lic em História que me garantisse a subsistência, em perigo por ter integrado o Movimento, inseria-me num grupo de trabalho que se manteve ao longo dos 5 anos do Curso.
A "A" é hoje uma museóloga conhecida e com trabalho feito no Norte do País onde se tem dedicado apaixonadamente ao restauro de um famoso mosteiro, tendo aparecido já por diversas vezes na TV. Activista ferrenha do MRPP, tal como o marido, possivelmente hoje é PS. O "ACP" seguiu a carreira académica. Era o "benjamim" do grupo. Na altura torcia pela UDP. Hoje deve ser PS é conhecido internacionalmente e no âmbito nacional tem uma enorme projecção, com participações frequentes na TV em debates e mesas redondas, conferências na Gulbenkian e Cursos na UNL. Vários livros publicados sobre o Estado Novo e Prof Catedrático no ISCTE. A "D" era talvez o elo mais fraco da cadeia.
É sobre ela que eu quero falar.
A “D” era secretária de um rico industrial nortenho que tinha uma delegação em Lisboa. Ele era pessoa de idade e com uma mulher extremamente doente. Por diversas vezes tentou uma aproximação, mas a “D” sempre lhe resistiu.
Até que um dia …
A “D” tinha uma irmã mais velha e com duas filhas, cujo marido trabalhava sazonalmente na restauração algarvia. Não tinha mais família e ela ajudava economicamente a irmã. É então que esta adoece gravemente com uma leucemia e acaba por falecer.
Desesperada, a “D” acaba por ceder às abordagens do patrão e fica envergonhada. O seu comportamento escolar modificou-se e nós não compreendíamos o porquê dessa modificação. Resolveu abandonar os estudos.
A “A”, depois de muito insistir, conseguiu que ela lhe contasse o porquê da sua intenção em abandonar o curso já a meio e ela contou-lhe.
Resolvemos ajudá-la. Fazíamos muitas vezes os seus trabalhos e dávamos-lhe o apoio que ela precisava. Por vezes abria-se connosco queixando-se da sua solidão, pois o homem vinha esporadicamente a Lisboa e demorava-se pouco tempo. É certo que ela acompanhava-o nas suas deslocações ao estrangeiro, que eram frequentes mas pouco proveito tirava dessas deslocações, remetida sempre para o hall do Hotel, enquanto o companheiro tratava de negócios.
Sentia a falta de alguém da sua idade.
Como ela dizia, nós éramos a família que não tinha. Éramos os seus irmãos. Vivia para as sobrinhas que criava e sempre se manteve fiel na sua relação amorosa com o patrão. Mas envergonhava-se da situação. Ansiava por terminar o Curso e tornar-se independente economicamente e nós, na medida do possível, ajudámo-la a consegui-lo e continuámos amigos depois do Curso.
Um dia, quando eu estava a dar aulas, a “A” telefonou-me dizendo que a “D” tinha sido atropelada mortalmente à saída da Escola onde leccionava…
14 Comentários:
Eis uma estória da vida real que bem evidencia a difícil solidão que pesa sobre um coração que vive um amor socialmente discriminado.
É verdade que nos países muçulmanos o casamento poligâmico é reconhecido por lei mas, mesmo assim, segundo me disseram, o correio dos leitores dos jornais está repleto de estórias de mulheres casadas com homem partilhado, desgostosas e infelizes com a sua situação...
Donde se conclui que não é fácil resolver este magno problema da felicidade sexualmente afectiva, não parecendo haver qualquer solução universal válida.
Contudo, para mim tenho um lema: - Uma mulher é perfeito; duas mulheres é um inferno; três ou mais, é perfeito.
Abraço,
Vasco
vbm
Não tem comparação, mas fizeste-me lembrar o nefrologista que me tratou dum problema renal que me surgiu em Março e hoje felizmente curado:
- Quem tem um médico, trata-se.
- Quem tem 2 só tem 1/2 médico para se tratar.
- Quem tem 3 não tem nenhum.
Abraço.
Justo o que digo!
Um médico ou nenhum,
mutatis mutandi.
:)
Talvez a ficção me desvirtue a minha percepção do real... esperava um desfecho diferente para esta história, fica-me o amargo de pensar que não podemos lutar contra o destino, mesmo quando, com todas as nossas forças, o desafiamos.
vbm, um amor? Achas mesmo que a rapariga gostava do patrão? Acho que uma segunda leitura pode ajudar ;-)
Pancrácia
Claro que gostava, Pancrácia!
E o patrão gostava da rapariga.
Não tenho dúvida que era um amor correspondido.
O que não obsta a que ela não sentisse necessidade
de retribuição com uma presença mais permanente.
É compreensível.
Mas não é desamor.
É como sinto a estória.
Pancrácia
Trata-se de uma história verídica. O homem já há muito morreu.
Quem lê o texto, sem a mente suja, devia era referir o facto de a "D" se ter sacrificado pelas sobrinhas e isso ninguém refere.
Lamentável!
Às vezes tenho nojo de pertencer a este povo.
gostei de ler a "estória". aliás muito bem contada. como sempre.
já não grupos assim. solidários...
abraços
Meu amigo lindo! Histórias que a vida escreve... A solidão que deixa o ser humano sem vontade de viver. Triste, mas infelizmente, real.
Bom fim de semana! Beijos
olhos de mel
Desculpe, mas será que você leu a história?
É que se não leu, não vale a pena comentar.
Só para fazer número? Não dá
Há vidas feitas assim ... de sacrifício em sacrifício, feitas de solidão e de amarguras próprias e que acabam estupidamente.
Não sei a D, como lhe chama, amava ou era amada, sei apenas que tinha algo que nem todos têm ... a amizade e a estima de um grupo de pesosas que fez o que podia e devia!
ferreira-pinto
A morte da irmã e o cunhado desempregado, o não haver mais familiares, levou-a a envolver-se com o patrão para poder sustentar as duas sobrinhas.
A vergonha que sentiu pelo que fora forçada a fazer, foi tal que pretendeu desistir dos estudos, nós é que não deixámos.
Revolta-me, pela amizade que lhe tinha, que nós lhe tínhamos, que o assunto seja abordado sordidamente em termos de dinheiro, sexo e amantes.
`Para mim, trata-se de um drama humano, em que "D" foi obrigada a violar a sua consciência +para criar as sobrinhos.
Neste momento, há muitas mulheres desempregadas a vender o corpo para alimentar os seus filhos.
Compadre Alentejano
"Compadre", vê como nos compreendemos!
Foste o único comentador a salientar o drama humano e a renúncia moral (tantas vezes hipócrita) para poder criar e educar as sobrinhas.
Infelizmente, nem isso pôde fazer. Não esqueço o tempo chuvoso, fustigando a meia dúzia de amigos que acompanharam o seu funeral.
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