domingo, novembro 27

Questões de contemporaneidade ou os dislates de uma sociedade decadente

O vizinho do terceiro direito comprou um carro novo. Já se sabe que a crédito. Ainda assim, é visível nos rostos de todos os outros habitantes do prédio, caras de poucos amigos e vislumbra-se mesmo alguma inveja.

Claro que esta velha questão da inveja enquanto pecado capital pode e deve ser analisado à luz de uma Igreja parada no tempo. Jesus não andava de automóvel – apesar de ter pedido um ao Pai que Se recusou a dar-lho – alegadamente “porque ainda não descobriram o petróleo. Queres andar de Jaguar à vela?”
Nunca saberemos a resposta de Cristo que se terá perdido em velhos pergaminhos que devem estar algures no Mar Morto.

A verdadeira questão é que todos os vizinhos se apressaram a comprar um carro novo. Naturalmente eu fui a excepção, já que nem para gasóleo tenho dinheiro, sendo portanto previsível uma longa temporada com a minha velha Astra.

Não acredito que tenha pesado no factor “compra carro novo” algumas premissas, como por exemplo, o pagamento da casa – ao Banco – os estudos dos filhos – subsidiados com outro empréstimo – ou até mesmo as consultas periódicas ao psicanalista. – Também financiadas pela banca – A ida ao psicanalista levanta uma série de questões que me parecem fundamentais: será possível ir ao dito ter a sessão semanal sem um carro topo de gama? Se sim, qual será o modelo mais adequado? – Parece-me óbvio que um Mercedes já não se coaduna por ser carro de empreiteiro bem sucedido e estar banalizado –
Se a opção foi comprar o Mercedes como explicar esse facto aparentemente inusitado ao psicanalista que vai de carrinho de mão?

Será acertado levar um livro da Margarida Rebelo Pinto para dar um toque de intelectualidade, ou por justaposição, deve levar-se, “Platão: como gastar dinheiro estupidamente” um livro descoberto há pouco e que se encontrava entre os pertences de Bento XVI?

Claro que este livro vem revolucionar completamente o que pensávamos deste filósofo. É agora possível verificar que Platão tinha fortes convulsões existenciais, à luz desta fantástica descoberta. Porém, levanta-se uma outra questão: se o vizinho do terceiro direito comprou um novo veículo para se distinguir dos demais habitantes do prédio, se Cristo queria à força ter um descapotável e se todos acabaram em psicanalistas, como pagar à banca os desmandos da fachada?

Estou seriamente preocupado com Sua Alteza Real, D. Nuno Pio de Bragança. A mania de se fazer deslocar numa vistosa carroça pintada é certo, com tons doirados e com o brasão visível na zona lombar do burro que puxa tão elegante meio de transporte, levanta aqui uma outra questão: quanto custa cada quilómetro da besta, em função do preço da palha?

Desiludido e sem respostas, atiro-me do terceiro andar abaixo a cantar a “Marselhesa” vestido de pai natal. Descobri tarde de mais que nem assim consigo voar.

Resta-me saber que terei de arranjar uma grande dívida à banca e parecer um tipo normal, embora deixe alguns sinais inequívocos de que sou na verdade diferente. Refiro-me, claro está, ao meu porte garboso, ao cabelo despenteado e à minha promessa de nunca tomar um banho.

12 Comentários:

Às 27 novembro, 2005 17:27 , Blogger Heloisa disse...

"Desiludido e sem respostas, atiro-me do terceiro andar abaixo a cantar a “Marselhesa” vestido de pai natal. Descobri tarde de mais que nem assim consigo voar."
............................
...........................POIS!!!!_SORRINDO!!!!!

_Fica um ABRACO!

(Enviei ha' algumas semanas e-mail para o SEU JORNAL!_Tera' lido???)

_Leio_O, com alguma frequencia; mas, manifesto-me poucas vezes, porque, minhas palavras sao sempre iguais e, nao fazem *Jus* (que merece) ao seu trabalho!
...................
Heloisa.
*************
**********************************

 
Às 27 novembro, 2005 17:35 , Blogger Nilson Barcelli disse...

Belo texto caro Zezinho.
Não te sabia tão teso, mas não vale a pena publicitares o facto que daqui não levas nada...
O problema do envidamento já não é novo, pois já há muito que a frase "deve as penas aos pássaros" é aplicada a preceito.
Só que agora tem aumentado e, em média, estamos com uma dívida de 110%.
Que tenham juízo, porque a maioria é mesmo para fazer ver aos vizinhos, coisa que já está fora de moda. Agora há outros meios para dar nas vistas.
Falar de Platão é uma delas (e não custa dinheiro...).
Um abraço e boa semana.

 
Às 27 novembro, 2005 17:54 , Blogger mfc disse...

Comprem Senhores, comprem... endividam-se alegremente!

 
Às 27 novembro, 2005 17:59 , Blogger Peter disse...

foi assim que começou na Argentina. É melhor irem pondo as barbas de molho e meterem algum debaixo do colchão, porque depois, se têm algum nos bancos, nem dele podem dispor ...

 
Às 27 novembro, 2005 18:29 , Anonymous Anónimo disse...

Gosto sempre de te ler... Mas o final de hoje, deliciou-me...principalmente a voluntária queda ser acompanhada da Marselhesa! Ahahahahahahah! Brilhante! E a pergunta de Deus Pai a Cristo?! Divina! Beijo

 
Às 27 novembro, 2005 19:26 , Blogger lique disse...

O consumismo e consequente endividamento, o interesse pelas aparências em detrimento da essência, tudo embrulhado em escrita muito divertida.
Estás em forma, Zé. Gostei de ler. Beijos e boa semana.

 
Às 27 novembro, 2005 22:41 , Blogger Fragmentos Betty Martins disse...

Olá Zé

As tuas “crónicas” são sempre certeiras. Não digo que seja o mal só dos portugueses. Mas que sofrem disso, sofrem! A aparência – podem não ter para mais nada, mas para pagar a APARÊNCIA o dinheiro tem que aparecer!

A forma como “cozinhaste” o texto está magnífico. Distingue-se, pelo alto grau de qualidade – a tua escrita.

Parabéns.

Beijinhos

 
Às 27 novembro, 2005 22:58 , Blogger Micas disse...

Um excelente texto, mais que oportuno nesta época natalícia, onde se compra tudo e ainda mais alguma coisa se houver.
A mentalidade da maioria dos portugueses é mesmo o viver em função das aparências. O acesso aos créditos não é difícil, consumir, adquirir, é o principal, como pagar não interessa, isso é um caso para resolver depois.
Desde que saí de Portugal e que posso fazer comparações entre a mentalidade do "nosso" povo e a do povo do país onde estou, mais me convenço que somos um país pobre com mania de rico...
É uma triste realidade e, faço minhas as palavras do Nilson, há outras maneiras bem melhores e bem mais inteligentes de dar nas vistas...
Beijos Zé, e uma boa semana para toda a equipa :)

 
Às 27 novembro, 2005 23:29 , Blogger António disse...

A profunda ironia e a crítica social do "zezinho" e do InApto estão aqui todas.
É bom ler textos destes.

Penso que é altura de fazer um peditório para ajuda do nosso amigo na compra de um carro novo.
E já pode fazer um vistaço na noite do réveillon (afinal é só mais um peditório; ninguém repara se é para o Zé, para a Cruz Vermelha ou para o Clube dos Dorme Sestas).

Obrigado pela visita.
Volta sempre.

Abraço

 
Às 28 novembro, 2005 00:24 , Blogger Su disse...

gostei de ler.te
pt está hipotecado, faz tempo:)))
jocas maradas cheias de voos

 
Às 28 novembro, 2005 01:45 , Anonymous Anónimo disse...

Como o verbo comprar não anda sendo muito conjugado por mim ultimamente - embora diga o governo que a situação econômica da nação é a melhor possível - contento-me com ouvir o Arabesque.

 
Às 28 novembro, 2005 20:19 , Blogger Rosario Andrade disse...

Infelizmente tens razão...
... eu nem carro tenho! Mas também não vivo nesse reino...

Abracicos!

 

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