sexta-feira, outubro 28

AURORA

As vidraças fustigadas pela fúria dos elementos dão o tom para um dia pintado de cinza.Mercê da luz artificial a chuva toma contornos brilhantes estilhaçando-se contra as janelas e desaparecendo no chão entre um caudal enorme de água anteriormente despejada pelos céus, juntando-se a tantas lágrimas de homens e de deuses descontentes com percursos enviesados de seres que se dizem humanos.
A aurora apanha-me ainda de pé depois de uma noite passada entre coisas minhas.
Pesa este silêncio sepulcral agora nem sequer interrompido pela chuva que parece ter parado por momentos. Retê-lo-ei para sempre como a ausência de som mais dolorosa de que tenho memória.
Dos murmúrios da noite segredados junto ao ouvido ainda que imperceptíveis – «Procol Harum» e um dos seus melhores trabalhos «Portfolio” – retenho uma espécie de “bichanar” já que nenhuma palavra consegui entender por ter sido articulada em segredo.«Grand Hotel» uma das faixas faz-me pensar na cidade que ambos olhámos da varanda do quarto de hotel pejada de luzes e copas de árvores intrinsecamente belas de folhas brilhantes e agitares motivados por ventos invisíveis. Hoje sei tratar-se de uma pequena cidade da Boémia Checa e do seu castelo medievo ladeado de águas milagrosas e quentes.
Esta repetição de desamores é ultrajante. Dir-se-ia que os deuses se comprazem em atormentar os seus filhos em rituais demoníacos. Entende-os de certa forma. Se conseguíssemos a felicidade não perderiam eles o estatuto de deuses?! – Passariam a inutilidades. – Aqui sim devemos exigir o desmontar da cabala.
Vem de alvo vestido. Diz-me que é Deus. Mas tem um ar tão pacóvio que tenho as minhas dúvidas pese embora uma ou duas habilidades que efectuou e a que chamou milagres: a chuva parou e ele disse ser obra sua. Voltou a chover copiosamente e volta a afirmar ter sido ele quem abriu as comportas. Desconfio. A mim parece-me mais um hippie perturbado com o consumo de ácidos.Vejo Maria que ele diz ser pura e casta chamá-lo preocupada. Olhou-me com ar de desculpa acrescentando em Aramaico [tens de cortar essa barba enorme e suja o cabelo está oleoso e não deves andar a perturbar as pessoas] o que me deixou algo confuso por ter sempre pensado que o Filho era mais importante do que a Mãe que o concebeu sem mácula nem penetração. Desapareceram no ar talvez levados por uma nave invisível aos meus olhos já cansados ou em alternativa na porta ao lado onde mora um barbeiro; nem quero saber. Afinal eram mais dois noctívagos que terão saído de uma qualquer discoteca perturbados pelo consumo de drogas e/ou álcool. Inclino-me mais para o consumo das duas coisas.
Não entendi porque teimava a Senhora em pairar no ar! Ainda lhe perguntei qual era o segredo já que seria bem mais cómodo deslocar-me sem tocar o chão, mas tudo o que obtive como resposta foi uma evasiva. Coloco a possibilidade forte de serem agentes do KGB.
As vidraças continuam a ser de novo fustigadas pela fúria das águas atiradas sob pressão por um São Pedro completamente descontrolado. Presumo que tenha pensado serem os estudantes de Coimbra em mais uma manifestação de repúdio pelo comportamento do governo e tivesse querido dar uma pequena ajuda à tenebrosa polícia de intervenção. Que a Igreja está conotada com repressão já o sabia, mas podiam ser menos óbvios. O próprio São Pedro é uma figura hedionda e repressiva? – Lá se vai a última reminiscência de poder acreditar algum dia na palavra das sagradas escrituras! –
Um diabinho – juro que não era vermelho – foi-me dizendo com voz calma para me ir deitar e tentar repousar. Coisa que farei por as pálpebras se recusarem a manter abertas.
«Something magic» está a acabar. Os Procol Harum parecem ter terminado o concerto com que me brindaram ainda que em vinil.Eis a hora certa para que a minha cabeça repouse um pouco dormindo, dormindo.

6 Comentários:

Às 28 outubro, 2005 23:16 , Blogger Peter disse...

letrasaoacaso, dá-me a impressão do texto já ter uns anitos, o que não impede que se leia com o agrado que a tua escrita sempre proporciona.

 
Às 29 outubro, 2005 00:01 , Anonymous Anónimo disse...

Uns anitos ainda não tem Peter, qd muito terá um ano, de qualquer modo acho que se consegue sempre retirar novas sensações e impressões de cada vez que se
[re]lê um texto do Letras.
Bom fim de semana a toda a equipa, aqui já com sabor de um S.Martinho adiantado :)

 
Às 29 outubro, 2005 00:02 , Anonymous Anónimo disse...

Mais uma vez o sistema não me deixou colocar o nome, o último comentário é meu.

 
Às 29 outubro, 2005 00:20 , Blogger Peter disse...

mariataveira, parece "o sistema" do Dias da Cunha.
Recusa identificar-te. Se calhar és do FCP ...

 
Às 29 outubro, 2005 02:41 , Blogger Fragmentos Betty Martins disse...

A chuva do poema
noite ardida a flutuar na rua
o espaço do último
som...
silêncio...
estranha geometria
pontuação que se fecha sobre o tempo
como quem colhe
os pingos das palavras
que restou de uma vírgula
aguaceiro forte
acolhendo a sombra
que passa na rua
aquela voz...
aquela voz
que se sobrepõe

Um beijo

 
Às 14 agosto, 2006 15:35 , Anonymous Anónimo disse...

Enjoyed a lot!
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