domingo, outubro 2

Cenários irreais

Num cenário irreal decorre a campanha para as autárquicas. Desde o assassinato puro e simples, passando pela troca de tiros (Em Arouca) até às arruaças já tão nossas conhecidas, num vale-tudo inexplicável para se conquistarem pequenos poderes que permitem o enriquecimento rápido de poucos, até ao folclore simplista da visita a mercados, o abraço e o beijo fáceis, a promessa que se sabe não ser para cumprir.
Este cenário condiciona a escolha.
Vota-se livremente. Não se vota em liberdade.
Tentar com correntes filosóficas explicar este fenómeno, talvez mitigue a minha ânsia de compreensão. Quiçá, possa mitigar a de muitos outros desencantados com a classe política que temos. Já nem ao medíocre chega.


O termo pragmatismo era no início do século XX, já tão difundido que Peirce achava melhor dar um novo rumo a esta palavra, enquanto procurava destacar sua concepção filosófica restrita à pesquisa da lógica e à análise da linguagem, por meio de uma semiologia e/ou semiótica –, estudo dos signos como meio de relacionar as coisas e as pessoas sob certas circunstâncias –, através do emprego do nome pragmaticismo, que não chegou a vingar. John Dewey considerava essa forma de pragmatismo muito restrita, enquanto não aceitasse as vinculações com a religião feita por James. Resolveu, por conta própria, ampliar o alcance da teoria propondo novas concepções pedagógicas, voltadas para o desenvolvimento da criança, ao mesmo tempo que abraçava as descobertas científicas de seu tempo. Embora não acreditasse ser possível reduzir o método científico a um grupo de regras procedimentais.
Dewey imaginava ser factível com inteligência conduzir uma investigação em geral, também na ética e noutras áreas humanas. Nesse sentido, lançou uma extensa obra abordando a educação, Vida e Educação; ética, Teoria da Vida Moral; o naturalismo, A Natureza Humana e a Conduta e teoria do conhecimento, Lógica.

Enquanto Peirce e James trabalhavam o pragmatismo como método filosófico para resolver as disputas metafísicas, chamando atenção para soluções que tentassem interpretar as teorias de acordo com suas consequências práticas, a geração de filósofos neopragmáticos, dos quais se destaca Richard Rorty, abandona qualquer pretensão teórica. O pragmatismo, agora, procura construir discursos voltados para uma transformação utópica do mundo. Com essa nova estratégia, a filosofia trataria de não mais preservar os aspectos positivos de teorias metafísicas, mas negar tudo aquilo que em nada tivesse servido para melhoria da sociedade.

A Pretexto de Descartes...
A dúvida metódica de Descartes foi um passo muito importante para a Ciência. Configurou filosófica e metafisicamente um conjunto de certezas para o cientista prosseguir o seu trabalho, na convicção que ao Homem cabia a tarefa de perceber o mundo que o rodeia. Esta descontracção mental advinha da consciência da própria existência, através do cogito (Penso, logo existo) e a aceitação da ideia de Deus como certeza inata e decorrente da própria dúvida cartesiana. Descartes era um homem do século XVII, não se libertando do dogmatismo da Igreja, ambiente mental, cultural e religioso com repercussões na sua filosofia, dotada de intrincadas ambiguidades. Em Descartes –, e provavelmente daí a riqueza da sua obra e pensamento –, confrontam-se o homem velho e homem novo. Neste último entronca pleno de vitalidade o Discurso do Método, a procura de metodologias racionais para chegar à verdade das coisas. Uma dúvida fecunda, a impregnar saudavelmente todos os momentos do saber, deveria ser fonte de conhecimento, processo de resolução de problemas, método adequado à curiosidade própria do espírito humano. Mas Descartes não se liberta da sua época nem de Deus. Face à vigilância que a Igreja exercia sobre as mentes, Descartes ao invés de partir unicamente do Homem para compreender a Natureza e a si próprio, vai fundamentar o conhecimento na ideia de Deus. Entre o homem filosófico e o homem histórico, qual o verdadeiro? O que há de comum aos dois? A força da conjuntura, das épocas, ou a natureza íntima de cada ser humano?


Vivemos um tempo triste em que se assiste a uma efectiva desvalorização da política. Infelizmente, muito por culpa dos seus próprios promotores e apologistas. Esse desgaste tem muitas causas: uma constante dança de cadeiras ministeriais, a contradição entre o discurso e a acção (cujo último exemplo, a julgar pela imprensa, é o rigor da afirmação de uma «cultura de avaliação», que é contrariado pela forma trapalhona como foi (di) gerido o processo de definição de rankings. Um desânimo que se traduz numa tentativa de gestão corrente dos assuntos, sem grandes sobressaltos, mudando um pouco tudo... para que tudo fique na mesma.

É neste cenário aparentemente contraditório que decorre a campanha para as “autárquicas”.

Entre a utopia aceitável, o populismo condenável e um pragmatismo duvidoso, a que falta acrescentar questões de ordem puramente judicial – lembro que 124 edilidades estão a ser investigadas – vai ser tarefa árdua para os portugueses escolherem os seus governantes locais.

3 Comentários:

Às 02 outubro, 2005 23:36 , Blogger Su disse...

gostei de ler..como sempre mta coerência e lucidez na escrita
jocas maradas

 
Às 03 outubro, 2005 11:26 , Blogger Peter disse...

"Vivemos um tempo triste em que se assiste a uma efectiva desvalorização da política. Infelizmente, muito por culpa dos seus próprios promotores e apologistas. Esse desgaste tem muitas causas: uma constante dança de cadeiras ministeriais, a contradição entre o discurso e a acção ..."

Excelente texto, adequado ao momento eleitoral que vivemos e em que, para além da política, recorres à Filosofia, como diz a "lazuli":

"Não é a retórica uma das formas de fazer politica através dos signos? Gostei desta deambulação entre o signo, pensamento e realidade. Cabe perguntarmo-nos como é que isto está a acontecer..Porquê?"

 
Às 04 outubro, 2005 01:11 , Blogger Amita disse...

"Cenários irreais" excelente no seu todo. Dizes "vota-se livremente. Não se vota em liberdade", dizes " mudam um pouco de tudo... para que tudo fique na mesma", lembras as 124 investigações em curso, entre muitas coisas mais...E agora pergunto, achas realmente que vai ser uma tarefa árdua para o nosso povo na hora de votar? A meu ver, só uns poucos é que se irão lembrar de tudo isto... e estes irão votar? E se forem, em que altera a situação? Desculpa, mas a descrença é enorme, e o cenário que prevejo é tudo ficar mais na mesma para pior. Um bjo

 

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