terça-feira, outubro 4

A ausência de sonho

No ar cinzento de manhãs submersas, paira o sombreado de quadros negros na nossa memória.
A inevitabilidade do encontro com a morte faz-nos pensar na inexorabilidade da vida a escoar-se entre dedos, rumo a um fim anunciado, que pensamos tantas e tantas vezes ser apenas apanágio dos outros.

Esta inevitabilidade dever-nos-ia fazer apreciar os momentos felizes, as coisas boas da vida, as memórias de baús que vamos arrecadando algures num inóspito sótão memorial coberto de teias de aranha, que são em última instância todas as limitações que nos impomos, ou que nos impõe um sistema concebido para que o livre pensamento seja absorvido por estereótipos conducentes a comportamentos duvidosos e que questionam sobremaneira a nossa verdadeira inteligência.

[Memórias de minhas putas tristes] é afinal um livro pleno de ternura.
Não fala da verdadeira prostituição, mas de amor.
Os prostíbulos estão em S. Bento, no Vaticano, em muitos credos religiosos.
Prefiro os proxenetas, as putas verdadeiras, todos os marginais capazes de desafiarem um sistema corrupto, que ao contrário destes, não assume a decadência em que está mergulhado.

Invade-me uma paz anacrónica. As notas que vão saindo de um Igor Fiodorvitch Stravinsky percorrem-me a coluna vertebral.

“A sagração da primavera” com os seus ritmos selvagens, ausência de melodia, mas de uma energia selvagem e que marca indissociavelmente a música erudita do século XX, fazem-me ainda acreditar – mesmo que apenas durante a audição – que perverter um sistema agonizante, derrubando-o através de energia pura, ultrapassa a mera possibilidade.

As religiões sobretudo vão anunciando o fim dos tempos, Deuses castigadores, réplicas inquisitoriais perdidos da memória dos homens, lembradas apenas em velhos calhamaços de História.

Assistimos impávidos à “divina decadência”, sendo a cultura – que preenche a alma – atirada para o fosso dos dejectos e valores que deveriam ser intemporais, tornados verdadeiros fósseis por uma sociedade mais preocupada com o invólucro do que com o conteúdo.

A sensibilidade é vista como fraqueza, a erudição como mania, a leitura como vício caro, a música, a pintura, a escultura e todas as formas de arte apontadas como excentricidades de ricos.

Inverdades.

A cultura popular – a verdadeira cultura popular – é riquíssima.
A cultura dos académicos deve estar ao alcance de todos. Ouvir Mozart, aprender a gostar de Jazz não pode continuar a ser privilégio de alguns. Tem de ser direito de todos.

Prevalece ainda a manhã cinza, enevoada, povoada de quadros negros, com pinturas negras.

E a chuva que vai caindo dá o toque final na esperança de homens, lavando devaneios e utopias.

Um dia, todos os homens serão iguais, nas suas imensas diversidades. Haverá então lugar à cultura.
Será o regresso dos valores intemporais, que não se esgotam nas limitações da ausência de memórias.

Um dia sonhou-se Abril.
Hoje sabemo-lo apenas sonho.

Também a revolução em tempo de cravos, é hoje apenas uma data pedida no tempo e sem conteúdo.
Um sonho que definhou culminando num acordar de manhã cinza e sem sentido.

Parafraseando Zeca Afonso: “ (…) Abril morreu (…)

Ficaram sementes. Ficaram utopias no inconsciente colectivo.
Quem sabe, um dia, os cravos renasçam!

Seguir-se-ão comemorações de nada.
Apenas o sonho permanecerá intacto, aguardando o momento único de se cumprir.

Revolução sem forte componente cultural não existe.

Dos arquétipos da memória haveremos de arrancar as nuvens que teimam pela presença.
Pintados a negro prevalecem os quadros pendurados nas paredes cinza.

Preocupante é assistirmos à “Divina decadência” comandada por sotainas efeminadas bordadas a ouro.

Continuarei a ler, “As minhas tristes putas” de Gabriel.
Aí, o sonho ainda é possível.

9 Comentários:

Às 04 outubro, 2005 22:13 , Blogger Amita disse...

"Memórias de minhas putas tristes" é realmente uma belíssima história de amor. Li o teu artigo a correr, voltarei para lhe prestar mais atenção. Bjo e inté

 
Às 04 outubro, 2005 22:13 , Blogger António disse...

Eu continuo a pesquisar; sobretudo a minha mente.
Mas tu, pelo que li, também pesquisas...e muito!
Um abraço do e para o António

 
Às 04 outubro, 2005 22:21 , Anonymous Anónimo disse...

Tal como disse a Amita, uma belíssima história de amor. "Aí o sonho ainda é possivel" dizes tu, eu diria que o sonho é possivel para todos aqueles que vivem a vida, que acreditam no sonho e lutam por ele. Para esses que VIVEM, o sonho é sempre possivel. Pior do que a morte é o viver morto e o morto não tem sonhos...
Boa noite

 
Às 04 outubro, 2005 22:42 , Blogger Menina Marota disse...

"Parafraseando Zeca Afonso: “ (…) Abril morreu (…)"

Tens razão...porque...

"...Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança."

(Excerto do poema " A Pedra Filosofal" de António Gedeão)

...de García Márquez, ainda leio "Viver para contá-la"... quem sabe mais tarde, irei para a ternura de "As minhas tristes putas".
Um abraço de boa noite ;)

 
Às 04 outubro, 2005 23:21 , Blogger Peter disse...

Zé, este texto é, para mim, dos melhores que aqui escreveste, porque consegues fazer nele uma "simbiose" perfeita entre diversos temas que, no mínimo, deveriam merecer o interesse de todos nós.

Comprei "As minhas putas tristes", mas ainda o não li. Folheei-o e anotei quando o autor toma consciência da ideia de morte aos 40 anos e a partir daí começa a dividir a vida por décadas.
Faz-me lembrar ARR:
"Amar esta sombra que desliza e que é talvez já a presença que nos foge."
Comprei "Cem anos de solidão" para voltar a lê-lo. Há muitos anos tinha lido a 1ªed que conservo. Mas gosto do cheiro da tinta fresca dos livros novos.

Levei as férias a ler "A filha do capitão". Brilhante trabalho de pesquisa histórica.

Sábado almocei com gente que fez o 25 de Abril. Alguém tinha de avançar. Fizemo-lo nós, demos o "pontapé de saída".

Além de gente sem relevância política, como é o meu caso, estava lá o Otelo, o Major Tomé da UDP, o Vasco Lourenço e o Martins Guerreiro. Este último exortou-nos a constituirmos comissões de luta para defesa dos valores por que lutámos.

P.S. - O meu anti-vírus acaba de me avisar duma tentativa de invasão do meu PC. Mais uma ...

 
Às 04 outubro, 2005 23:47 , Anonymous Anónimo disse...

Pois ainda não tive oportunidade de ler este livro do Gabriel García Marques, mas após ler este seu post, certamente não demorarei muito tempo a fazer esta leitura. Beijinhos.

 
Às 04 outubro, 2005 23:48 , Anonymous Anónimo disse...

Ressalvo: Márquez.

 
Às 05 outubro, 2005 14:46 , Anonymous Anónimo disse...

blue: já reparaste que esse espírito fast-food se reflecte em tudo nas nossas vidas? Ate nas relações, como o Peter já mencionou há não muito tempo...

Qt ao livro ainda não cheguei à parte da "belíssima história de amor"; por enquanto leio apenas um velho em decadência, que está vivo mas que há muito deixou de viver.
Envelheceu aos 40. Muitos há assim. O que aconteceu à "ternura dos 40"? Pior são os que deixam de viver muito mais cedo...

Mas afastei-me do tema...
Devaneios!

 
Às 06 outubro, 2005 18:02 , Anonymous Anónimo disse...

blue: parte do indivíduo. Já que vivemos numa sociedade egoísta e egocêntrica... o indíviduo devia pensar + nele mesmo... não acredito que esse seja o caminho quer para a felicidade quer para o sentimento de plenitude.

 

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