O abismo negro da noite

Esventrar a noite e rasgar horizontes que se perdem logo ali na linha imaginária onde tudo parece terminar e começar.

Lá será o génesis de tudo.
Ou o apocalipse.

Esventrar a noite é esventrar-me [te].


Maldita solidão que se apodera de tudo reduzindo-nos a míseras partículas de nada!
Apenas o desenho sombreado de lábios entreabertos que se guardam nas memórias parecem trazer uma espécie de luz ao negro fantasmagórico que é agora a companhia não desejada.

No silêncio/sepulcro – estarei ainda vivo? – a antevisão do Inferno Bíblico.
Miríades de chamas que se elevam em tremendas espirais cuspindo fogo e fumos e cheiros intensos de enxofres, figuras mitológicas e aterradoras são agora o sonho feito pesadelo. Nem Deus consegue imaginar nada tão mau.

[O silêncio criminoso de Deus]

O silêncio? – Apenas o silêncio? – Então e a convivência?
Esquecemos essa tremenda omissão que permite o jugo, a dor, a infelicidade. E que faz esse Deus omisso e poderoso? – [nada. Deixa-nos ir diluindo no esquecimento. No nosso próprio esquecimento. Esquecemos que somos capazes de nos esquecermos que esquecemos]


Alguma paz.

O sonhar-te em beijo na boca bem desenhada e o toque subtil quase não-toque que faz estremecer todos os alicerces. Devorando-te [me] em [ti]

Ao longe o som audível dos carrilhões clamando pelo divino ou convidando apenas ao esquecimento.

O escorrer labial de fluidos que se [te] escapam confundindo-se com os meus.

Já nem Deus consegue evitar a tranquilidade.

Sei que os olhos se semicerrarão lentamente ao sabor do toque quase não-toque. O despertar do pesadelo que a imaginação conseguiu fazer sonho.